O snack-bar da Alice
Foi há três Verões atrás, há cerca de três anos, no Verão, que o Estimado Ouvinte e o Caro Telespectador se encontraram para comer uma caracolada como não havia outra. Guisadinhos, com os corninhos de fora, a puxar ao sal e à imperial fresquinha, as lesmas só tinham descanso quando os amigos pousavam os picos para ensopar o panito no molho, ou destemperar com um tremoço. A conversa também era amena: discutia-se a programação da semana, o que dava sempre azo a animadas controvérsias, já que nem o Estimado Ouvinte apreciava os programas de televisão, nem o Caro Telespectador tinha paciência para as rubricas da telefonia. E foi por isso, mas sobretudo por a tachada de gastrópodes ter chegado ao fim, que decidiram que a tarde ainda era jovem, que o dia estava agradável, e que seria um gesto simpático ir visitar um amigo comum, pelo que se puseram a caminho da casa do Prezado Leitor, que vivia numa vivenda ali por trás do campo da bola, mas o Prezado Leitor não vivia na vivenda, vivia na garagem da vivenda, por divergências familiares, e vivendo como vivia na garagem da vivenda, havia muito espaço no acesso à garagem, porque o carro ficava em cima do passeio, e tendo todo esse espaço, o Prezado Leitor decidiu que durante muito tempo não teria necessidade de despejar no vidrão as grades de super bockes vazias que entretanto se acumulavam de tal forma que já nem era fácil dar com o portão da garagem.
Mas o Prezado Ouvinte e o Caro Telespectador eram da casa, e essa dificuldade não se lhes aplicava, pelo que lá contornaram as múltiplas grades e irromperam pelo abrigo do Prezado Leitor, o qual, enquanto lia avidamente um exemplar da TV Guia, cozinhava num petromax uma tachada de caracóis como não havia outra. Guisadinhos, com os corninhos de fora, a puxar ao sal e à cerveja fresquinha foi uma bênção dos céus e os três amigos logo deram conta do petisco, enquanto o Prezado Leitor os punha a par dos futuros episódios das telenovelas e das últimas rábulas dos Parodiantes de Lisboa. Uma tarde bem passada, por bem passada que se passe, sempre se acaba, e com a promessa de se juntarem brevemente para comer uma caracolada como não havia outra, o Estimado Ouvinte e o Caro Telespectador lá deixaram o Prezado Leitor entregue à lavagem dos tachos e aos jornais desportivos da semana passada, e seguiram em direcção ao pôr-do-sol, mas ainda não tinham chegado ao portão da vivenda quando se lembraram que seria um gesto simpático e de boa vizinhança levar todas aquelas garrafas de super bock que ali se amontoavam para o vidrão, e assim fizeram: acumularam quase meia tonelada de minis e médias vazias na traseira de uma Renault 4L amarela, e com os corações leves e as bexigas apertadas, seguiram em direcção ao pôr-do-sol, evitando com prudência os buracos da estrada e as bandas sonoras para que não estalassem inadvertidamente alguma das garrafas. E assim com mil cuidados lá chegaram ao vidrão, onde um papel em letras garrafais advertia:
FECHADO PARA BALANÇO
O Caro Telespectador e o Prezado Ouvinte nunca tinham ouvido falar de um vidrão fechado para balanço, e acreditavam até que nem o Prezado Leitor, com toda a sua vasta cultura já tivesse ouvido falar de um vidrão fechado para balanço, mas as boas intenções prevaleceram e tornaram a pôr a meia tonelada de vidro castanho na traseira da Renault 4L amarela e prosseguiram na direcção do pôr-do-sol na esperança de encontrar um vidrão que não estivesse fechado para balanço, o que não conseguiram.
Foi assim que se viram já fora dos limites da povoação e cada vez mais próximos do pôr-do-sol, porque já eram quase 7:30 da tarde e ele estava quase a pôr-se, e enquanto pensavam como era difícil concretizar uma boa acção e sonhavam com caracoladas como não havia outras e cervejas fresquinhas, repararam que no fundo de um barranco, quase escondido entre destroços de frigoríficos e tambores de máquinas de lavar, havia um monte de garrafas de cerveja abandonadas, e como pessoas racionais que eram, facilmente decidiram que um monte grande era melhor que dois montes pequenos, e em vez de trazer aquele para cima, resolveram deitar o seu pelo barranco abaixo.
E lá voltaram, no seu Renault 4L amarelo, em direcção ao nascer do sol discutindo noticiários das 8 e telejornais das 9 e com vontade de comer um pires de caracóis antes de adormecer.
Foi ao outro dia de manhã, quando por coincidência se tornaram a encontrar no café para tomar uma bica que uma personagem singular se aproximou. Não era outro se não o Feliz Contemplado que sem contemplações os abordou:
- Ora vejam se não são o Caro Telespectador e o Estimado Ouvinte! Foi encontrada uma raspadinha falsificada debaixo de meia tonelada de garrafas de cerveja encontradas no fundo de um barranco, e disse-me um passarinho que vocês teriam algo que ver com o assunto.
O Estimado Ouvinte e o Caro Telespectador entreolharam-se, guardaram silêncio por uns segundos e aquele finalmente admitiu.
- É verdade, Feliz Contemplado, não posso dizer mentiras. Fomos nós quem pôs a raspadinha debaixo da meia tonelada de garrafas de cerveja.
O Feliz Contemplado sorriu de orelha a nariz, pois desde o acidente na guerra de 1920 que tinha perdido a outra orelha, e com malvadez informou:
- Vocês sabem qual é a pena por falsificar raspadinhas? É um crime sério e não terei outro remédio a não ser participá-lo.
Nesta altura o Caro Telespectador levantou-se de um salto, rebuscou nos bolsos das calças, depois nos do casaco, e não encontrando as estribeiras concluiu que as perdera. Agitando um dedo ameaçador em frente do nariz do Feliz Contemplado ameaçou:
- Tem cuidado com a maneira como falas. Olha que o meu amigo é um irascível!
- Estou-me nas tintas para a nacionalidade dele. - berrou o Feliz Contemplado fora de si - Raspadinhas de contrafacção são caso grave, e isto não ficará assim. Vou imediatamente reportar o caso ao Justo Vencedor, que deve estar aí a chegar.
Palavras não eram ditas quando a porta se abre com uma rabanada que tinha sobrado do Natal e entra o Justo Vencedor, com o ar altaneiro e apaziguador de quem se sabe Justo e Vencedor. Ouviu atentamente toda a história, e com toda a calma decretou:
- Vamos mandar vir uma caracolada como não há outra.
E assim fizeram e lá ficaram, a comer caracóis guisadinhos, com os corninhos de fora, a puxar ao sal e à imperial fresquinha, sentados à mesma mesa que o Gerónimo Matatias, que repetia:
- Desculpa, mas não sou capaz de ver. É que não sou mesmo...
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