O Menino Que Não Era Diferente



Havia um menino que não era diferente. Por não ser diferente, não tinha direitos, pois desde que ouviu falar no direito à diferença que percebeu que o seu futuro estava comprometido.
Não era de bronze, nem verde nem prodigioso.
Chamava-se Rui. Não Ruy, que o seu nome era tão pouco diferente que não tinha ipsilons, capas ou apóstrofos. Era Rui Gomes da Silva. Às vezes, quando se sentava sozinho no seu quarto a pensar às escuras, achava que gostaria de ser Gomez, que isso lhe daria um certo encanto. Ruy Gomez d' Silva. Isso sim, seria um nome de respeito, capaz de rivalizar com os colegas da escola; o Davide, a Kristina ou o Phillippe. Havia até uma Anita, que não era Ana, uma Lena que não era Helena e um Alex que não era Alexandre. E depois havia aquele trauma de ter 3 nomes. Um próprio, um do pai e outro da mãe. Os outros meninos tinham muitos mais. Pelo menos uns cinco ou seis, como qualquer pessoa que se dá ao respeito. António Pedro Joaquim Moreira da Conceição Faria Meireles d'Ataíde Mendonça Saavedra Coutinho Meneses de Almeida e Albuquerque. Mas para os colegas era o Tonecas... Fino mesmo era ter só dois, como se fosse só filho de Deus e não de Nossa Senhora: Maria d'Orey! Gregório d'Amiccy! Eduardo Reyes! Ena pá, isto é que eram nomes distintos, com letras finas e apóstrofos! Nomes destes jamais seriam escritos em letra de imprensa, tinham que ser cuidadosamente caligrafados, sem sair das linhas e sem usar canetas de gel. Eram escritos a Parker, e só na escola primária, que depois usariam tinta permanente. Permanente e indelével!
Mas não, o Rui era apenas Rui. Igual a si próprio e sem diferenças que o diferenciassem ou distinções que o distinguissem. Nem sequer tinha doenças dignas de renome. Nem síndromes (de Down, de Asperger ou da China) nem dislexia, disgrafia ou displasia. Na escola, enquanto havia colegas que tinham dificuldades de concentração, ele estava distraído. Enquanto outros tinham disgrafias e dislexias, ele dava erros. Se alguns tinham ausências, o Rui estava na lua. E se alguns não faziam os trabalhos de casa porque o ambiente em casa não era propício e lhes tinham dado mais responsabilidades do que a sua tenra idade permitia, ele era simplesmente calão ou preguiçoso.
Sim, porque também em casa o Rui não era diferente. Não vinha de uma família disfuncional nem monoparental, tinha pai e mãe que não estavam divorciados e não se batiam nem praticavam violência psicológica. Havia outro menino na sua escola que também vivia com os pais. Ele e esse colega eram normais. Todos os outros tinham uma situação familiar especial.
Mas não o Rui. Era tão normal que enquanto as outras famílias viviam em T2, ele morava num apartamento com três assoalhadas. Tão comum, que enquanto as mães dos outros eram domésticas, a dele era dona de casa. Tão pouco diferente, que enquanto os pais dos outros meninos eram empresários em nome individual, o dele era trabalhador por conta própria. Sendo assim canalizador, pessoa simples e que não podia suportar custos com contabilidade organizada e engenharias financeiras, até pagava impostos, e se pagava impostos era porque podia, vivia desafogadamente e não precisava de abono de família nem subsídios para livros, ao contrário dos colegas cujos pais tinham turismos rurais que davam sempre prejuízo, coitadinhos, e que tinham que ir a correr levantar as senhas dos almoços todos e os manuais escolares que depois se esqueciam de trazer para a escola antes de ir para casa dar um mergulho na piscina porque o personal trainer estava quase a chegar para a aula de equitação.
Mas o Rui era um rapaz normal, como qualquer rapaz normal que gosta de saltar, correr e jogar à bola. E era isso que ele fazia, quando chegava a casa e terminava os TPC. Agarrava na bola de catchum e aí vinha ele disparado chutar bujardões contra a parede da garagem do sr Zé. Tinha que chutar contra a parede, porque os amigos não eram normais como ele e andavam nas AECs, nas explicações, no ballet, no karaté e no yoga, portanto não tinha a quem passar a bola.
Era solitária, aquela vida de menino normal.
Um dia disse à mãe que também queria ir para o ioga, mas quando se foi inscrever, disse ióga em vez de yôga, e a professora/instrutora/guru percebeu logo que ele era demasiado pouco diferente para uma disciplina tão disciplinada e disciplinante e aconselhou-o antes a comer uma peça de fruta. A mãe sentiu a sua dor, e ainda sugeriu a dança jazz ou aulas de pilates, mas o Rui sabia que nas aulas de pilates não podiam entrar meninos que não tivessem ipsilones ou capas ou apóstrofos no nome, e recusou.
Às vezes ajudava o pai com as canalizações e uma vez entalou um dedo, mas como não era diferente, não foi preciso ir à clínica nem ser dispensado das aulas de educação física, e obrigaram-no a passar as coisas do quadro na mesma, apesar de não conseguir segurar na caneta com firmeza. À noite foi com os pais ao café e como se queixava do dedo, o pai ralhou com ele, para não ser choninhas, mas todos sabiam que o Rui não era diferente, por isso não chamaram a GNR nem fizeram queixa à  Comissão de Protecção de Crianças e Menores Diferentes, nem ligaram para o tribunal de Haia a perguntar o que deviam fazer e se tinham visto o Zé Pedro.
E assim era o Rui, todo igual, todo diferente, satisfeito com o que era e o que tinha, sem saber que não era diferente e nem por sombras desconfiando que, de tão pouco diferente que era, era na verdade único.

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