A menina e o unicórnio

Há muitos, muitos anos atrás, num lugar muito, muito distante, havia um unicórnio.
Era um unicórnio muito triste porque se sentia muito sozinho, uma vez que nesse lugar distante havia um unicórnio.
Não havia dois unicórnios, nem três unicórnios, embora já os tivesse havido.
Foi Deus, que num dos seus momentos de ironia, sarcasmo ou pura maldade criou os unicórnios, mas não as unicórnias. Maldade refinada, porque não se esqueceu de criar a unicórneas, que como todos sabem se encontram nos olhos dos Ciclopes, mas como Unicórnios e Ciclopes não se podem ver, já que aqueles só aparecem às virgens, e outra coisa de que nunca se ouviu falar foi de um Ciclope virgem, a continuidade da espécie esteve desde sempre comprometida. E isto apesar da contínua procura de virgens, tarefa cada vez mais ingrata, nos tempos modernos. Afinal, para que quer um unicórnio uma virgem?
Ora no tempo em que esta história se passa (há muitos, muitos anos atrás) e no lugar onde a acção se desenrola (num lugar muito, muito distante), não havia escassez de virgens, só de unicórnios, e a verdade é que os bosques pululavam de virgens em busca de unicórnios. Também pululavam de princesas em busca dos seus príncipes encantados, mas nunca se soube se essas eram virgens, embora pelo objecto da sua demanda se suponha que não.
Foi então numa floresta da Lacedemónia, que é um lugar muito, muito distante, que um dia entrou uma donzela. Era uma donzela menina, que não procurava unicórnios ou príncipes encantados, mas apenas cogumelos, nem venenosos nem alucinogénicos, para levar à sua avozinha, que estava doente e queria uma sopa de cogumelos. As florestas da Lacedemónia não são como as selvas dos filmes do Johnny Weissmuller, todas arranjadinhas e asseadinhas; têm ervas, paus, arbustos rasteiros e muitas, muitas silvas. Estava a menina já toda arranhadinha das silvas, coitadinha, tendo apanhado apenas uma catorzena de cogumelos, nem todos comestíveis, quando ouviu um restolhar atrás de uma giesta. Parou assustada, abriu muito os grandes olhos negros e escondeu-se atrás de um penedo. 
Nas florestas da Lacedemónia também há penedos. 
Susteve a respiração, escutou com atenção, e atrás de uma giesta ouviu um cuco a cantar: cucu, cucu, cucu curucucu. Pôde então respirar fundo e fechar os grandes olhos negros, saltando de trás do penedo e assustando o pobre do cuco, mas como tinha os olhos fechados não viu onde punha os pés e foi exactamente no sítio errado que os pôs: em cima de uma bosta de unicórnio. Os unicórnios também comem, e comendo, também defecam, como qualquer equino que não tem fraldas como os da charanga a cavalo da GNR. Porque era uma donzela menina, e apesar de estar num bosque florestal lacedemónio, onde ninguém a ouvia, não usou linguagem vernácula, mas sentou-se muito aborrecida em cima do penedo e comeu distraidamente um cogumelo. Em má hora o fez porque com a distracção o cogumelo que ingeriu era alucinogénico, o que a menina donzela compreendeu assim que começou a ver arco-íris no meio da floresta. Mas se bem o compreendeu, menos se importou porque os arco-íris eram tããão fofinhos que já não fazia diferença. Nem se admirou ao ver um unicórnio aproximar-se. Ao início julgou que era verdadeiro, por ter pisado a prova da sua existência, mas depois compreendeu que era real. Tão real que se aproximou e disse:
- .........
Porque os unicórnios não falam, isso é um disparate. Nem sequer num lugar tão, tão distante em que até há virgens. Só que a menina donzela, talvez virgem ou lacedemónia ou até tudo isso, não percebeu que o unicórnio não tinha falado, por influência do cogumelo, e conseguiu até ler-lhe o pensamento. O que foi outro disparate, por que já se sabe que o pensamento não é escrito, muito menos o de um unicórnio iletrado que defecava no meio dos bosques. O que a menina fez foi ouvir os seus pensamentos, os quais a deixaram deveras intrigada. E a intriga veio do facto de não perceber nada, e não percebeu nada porque nada havia para perceber, e nada havia para perceber porque o unicórnio era burro, e não tinha pensamentos dignos de ser ouvidos, ou lidos. Tudo o que fez foi olhar estupidamente para ela e mordiscar umas urzes que por ali havia.
Por sorte ou azar, as urzes eram alucinogénicas, e não tardou que o unicórnio burro imaginasse meninas e tentasse ler-lhes o pensamento. Tentativa infrutífera, pois não só o unicórnio era burro e não sabia ler, nem sequer pensamentos, nem a menina sabia escrever, muito menos pensamentos que pudessem ser lidos. E não sabia escrever porque andava no bosque a apanhar cogumelos malucos quando devia estar na escola de virgens, a aprender a ler e a escrever para poder comunicar com os unicórnios quando os encontrasse e fosse grande e virgem. 
Com tamanha falta de comunicação, acabaram por ir cada qual para o seu lado, cada um imaginando que tinha imaginado o outro, a menina sem saber se havia unicórnios, se os cogumelos eram adequados para a avozinha ou se era virgem, e o unicórnio sem saber se havia virgens, outros unicórnios ou se afinal era um cavalo enchifrado ou um burro cornúpeto.
E nunca mais se encontraram e assim se desfez o mito e acabaram os unicórnios e as virgens.

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