Pela hora da morte

   Foi num sábado que o Filipe faleceu.
  Quase ninguém reparou, porque o Filipe não era particularmente popular por estas bandas, truculento como era, sempre pronto a armar confusão, e ingrato mesmo para com aqueles que sempre o tentaram apoiar nos momentos difíceis. E não foram poucos, os momentos difíceis do Filipe, truculento como era e sempre pronto a armar confusão, o ingrato. Mas ingrato ou não, truculento ou não, e sempre pronto a armar confusão, não deixava de ser o meu ex-cunhado, e uma vez que não deixava saudades, amigos ou familiares que se importassem, decidi chamar a mim a responsabilidade de o levar a enterrar.
  Nos tempos que vão correndo não é fácil enterrar alguém, a não ser em dívidas, porque há inúmeros procedimentos a efectuar, desde a certidão de óbito, à declaração de insolvência e ao cancelamento da via verde, mas por fim lá consegui levar a cabo as diligências, e só nessa altura me deparei com a dificuldade imprevista: onde enterrar o Filipe.
  Primeiro, o Cemitério Municipal.
  - Lamentamos, mas o Sr. Filipe não era munícipe. Na verdade não pagava a taxa de municipalidade há vários anos, por isso os seus direitos e prerrogativas de munícipe já lhe foram retirados há algum tempo. Há até aqui umas taxas e coimas por pagar, referentes ao uso dos urinóis municipais e a escarrar na propriedade municipal.
  - Mas eu lembro-me disso! Foi durante o jogo de futebol entre Solteiros e Divorciados. Ele cuspiu para o chão, mas todos os jogadores de futebol o fazem.
  - Talvez sim, mas só os munícipes que paguem a Taxa de Escarragem o podem fazer no campo municipal. Além disso há ainda o caso da contra-ordenação por beber água do bebedouro público. É que o sr Filipe não tinha contador da água, por isso não pagava água ou saneamento, portanto não podia beber de bebedouros, fontes ou aspersores públicos.
  Enfim, lá tentei argumentar, mas não só o Filipe não pôde ser enterrado no cemitério municipal, como ainda tive que regularizar as contas com a edilidade, o que não me ficou barato.
  Tentei em seguida o crematório.
 - Temos muita pena, mas não podemos cremar alguém que se encontre em estado avançado de decomposição. O cadáver tem que estar sólido e tem que ser reconhecido por duas testemunhas, preferencialmente de Jeová.
  Expliquei que o Filipe não estava decomposto, que era naturalmente balofo e flácido, e que as peles que pendiam dos lados não estavam ainda decompostas, além do que as moscas que o cobriam  se deviam à falta de higiene do falecido, e não a putrefacção, mas o funcionário do crematório foi inflexível. Nada de fogueira para o Filipe.
  Lá voltei a pôr o defunto no carrinho de mão, e segui rua abaixo maldizendo a minha vida, a minha condição de ex-cunhado e o mariola do meu irmão, que me deixara esta responsabilidade.
  Debalde procurei solução: no Jardim Municipal, não se podia escavar; os tigres do circo que estava de passagem estavam com uma dieta rigorosa; no cemitério dos cães já não havia lugar; na ribeira da povoação, flutuava, dava mau aspecto e podia envenenar os patos e os peixes; a lixeira municipal, não o aceitou (não era munícipe), e a escola local, não necessitava de cadáveres para demonstrações ou experiências científicas.
  Já estava cansado de empurrar o Filipe por todo o lado quando reparei num sinal discreto mas de indubitável bom gosto: "Cemitério Particular".
  Deixei o carrinho de mão na rua e subi ao segundo andar, onde ficava o escritório. Fui atendido por uma funcionária loura, ainda nova, convenientemente vestida de preto e com ar profissional que me saudou de forma cortês.
  - Boa tarde, em que posso ajudá-lo?
  Expliquei a situação, os passos que já tinha dado e as dificuldades que se me deparavam, sem esquecer as moscas e truculência do Filipe. Ela foi compreensiva, ouviu com atenção enquanto tomava notas e ia abanando a cabeça como que a reprovar as pessoas que me tinham posto todos estes óbices. Terminada a descrição da minha odisseia (e do Filipe), ela declarou simplesmente:
  - Podemos ajudá-lo. Deseja vala comum, campa simples, jazigo ou gavetão?
  - Que me recomenda? - perguntei, mais por delicadeza que por curiosidade, já que não estava disposto a fazer muito mais despesa com o chato do Filipe.
  - Temos neste momento uma promoção muito interessante, de dois por um, para as campas simples. Paga uma e fica com dois lugares.
  - Não sei se me interessa, - repondi. - Apesar de tudo não me parece bem dividir o Filipe por duas campas diferentes. Ao menos seriam contíguas?
  - Deixe-me confirmar.
  E enquanto eu olhava em volta e apreciava a decoração, um tanto mórbida, mas adequada, consultou um tablet com a ponta das unhas pintadas de preto claro.
  - Lamento, mas neste momento não temos duas campas contíguas. Estamos à espera de uma trasladação, mas tem havido problemas alfandegários, não está ainda concluída. Se puder voltar para a semana talvez o possamos acomodar.
  Respondi que não podia esperar tanto tempo, tinha o Filipe lá em baixo no passeio, coberto de moscas e a começar a cheirar mal. Não teriam uma campa só, suficientemente larga para um defunto volumoso? Afiancei-lhe que ele já não era agora tão truculento, podia ficar perto de outros falecidos.
  Lamentou outra vez e sugeriu-me um jazigo, um pouco mais caro, mas mais espaçoso, podia aceitar também as moscas, sem custo extra, o que me pareceu um gesto simpático e de boa vontade. Infelizmente o preço era tão grande como o jazigo e incomportável, naquela altura.
  - Bem, - acabou por dizer com o ar algo consternado de quem vai sugerir algo ilícito - se o seu cunhado...
  - Ex-cunhado.
  -... ex-cunhado, é tão volumoso como diz, não caberá com certeza num gavetão, portanto só resta a vala comum. Não é tão digno ou exclusivo como o jazigo, mas pelo menos poderá tirá-lo do carrinho de mão e do passeio.
  - Isso seria agradável. Quão comum é essa vala?
  - É bastante comum. Não há lá individualidades, nem pilares da sociedade, apenas pessoas comuns. Há lá até algumas almas que nem sequer foram admitidos no Reino dos Céus, de tão comuns que eram. Vieram devolvidas e tivemos que as recauchutar para que fossem admitidas no Purgatório.
  Enfim, lá me persuadiu a enterrar o ex-cunhado numa vala comum, mais por conveniência de preço do que pelos predicados do lugar, que afinal mais não era que uma comum vala.
  - Vai querer uma cerimónia? Temos ministros de quase todas as confissões. Pode agendar uma cerimónia privada ou, se preferir, aguardar até que haja um serviço fúnebre conjunto e juntar o nome do seu falecido a um grupo proveniente de um acidente ferroviário, de aviação ou de uma epidemia. Não posso é garantir quando será.
  Já tinha poupado algum dinheiro ao escolher a vala comum, pelo que acabei por inscrever o nome do Filipe numa cerimónia a ser celebrada por um pastor da Igreja dos Penúltimos Dias do Santo Exorcismo, que me foi garantido ser uma confissão reputada, se bem que não das mais conhecidas, e que usava uma liturgia sóbria e, sobretudo, barata. Nada de sacrifícios humanos ou imolações de animais mais ou menos sagrados, o que iria acrescentar à despesa, nem paramentos e acessórios extravagantes. Poupei mais uns euros ao optar por um caixão de poliestireno extrudido, não tão resistente ou durável como o carvalho ou o kevlar que estava na moda, mas com menores custos de manutenção e que requeria menos pessoas para o carregar, apesar do peso do Filipe tornar essa poupança irrisória.
  - Vai pretender uma carpideira?
  Isso não me tinha ocorrido. Na verdade, depois de ter contratado a cerimónia fúnebre, seria um desperdício que ninguém assistisse, e não podia contar com amigos ou conhecidos do defunto para comparecer.
  - Que tipo de carpideiras tem?
  - Temos uma nazarena muito boa, acabada de chegar da Nazaré. Um bocadinho barulhenta, mas muito convincente. Chora muito e muito alto, lamenta-se aos gritos, e de um modo geral confere uma atmosfera de bastante pesar e chama bastante a atenção. É muito profisssional. Às vezes faz par com uma cigana que trabalha para nós há muito tempo, em ocasiões em que a TV está presente. Fazem um dueto verdadeiramente impressionante, a chorar à desgarrada e a chamar pelo ente querido, seja irmão, marido ou filho. Se preferir temos uma moldava muito distinta, loura. Tem um soluçar muito digno e discreto, é muito boa em funerais de pessoas importantes, que querem parecer honestas e dignas. Também temos o modelo familiar, da viúva com dois filhos pequenos. São um pouco mais caros mas ocupam mais espaço, enchem mais a capela e fazem o falecido parecer um homem de bem, com família que o adora.
  Nada disto me parecia adequado para o Filipe, pelo que acabei mais uma vez por optar pela versão económica, uma promoção de viúva alegre, vestida de vermelho mas que me foi garantido chorar e soluçar qb. Incluído na promoção vieram ainda três guinchos, a serem usados durante a cerimónia em alturas que devia depois combinar com ela.
  - Bem temos quase tudo decidido. - anunciou a funcionária. - Falta saber o que vai decidir para a vida eterna.
  - Também tenho que decidir isso? - estranhei. - Cuidei que lá do outro lado, ao dar entrada, decidiam o resto.
  - Assim era, de facto, até há pouco tempo, mas os sindicatos e as associações de direitos dos consumidores conseguiram que fossem os vivos a tomar essas opções. Argumentaram que era contra os direitos dos falecidos, e que o Além não devia, nem podia, ter jurisdição sobre a eternidade.
  - Então e que opções temos, afinal?
 - As mais populares são a Felicidade Eterna e a Reencarnação, mas são também as mais caras. A Felicidade Eterna tem custos de IMI exorbitantes, é para todo o sempre, e a Reencarnação precisa de muitos vistos, vacinas e licenças, porque nunca se sabe como vai reencarnar. Isso foi algo que os sindicatos não conseguiram assegurar. Depois temos a possibilidade de voltar como espectro, fantasma, aparição ou assombração. Qualquer deles é razoavelmente barato, não tem grandes custos póstumos.
  - Suponho que o Filipe daria um bom fantasma. Ele foi sempre um bocado chato, com a sua truculência, sempre pronto a armar confusão. Fica fantasma.
  - Muito bem, será fantasma. Como morreu ele?
 Expliquei que ninguém sabia muito bem, ninguém o acompanhava e ninguém estava presente quando morreu. Deram com ele morto no banco de trás do automóvel. Pensavam que estava bêbedo e tinha adormecido.
  -Banco ... de ... automóvel. - repetiu ela enquanto tomava notas no seu tablet. - Muito bem está tudo, por agora não é preciso mais nada. Receberá depois a conta que pode pagar por cheque, multibanco ou vale postal. Agendamos para amanhã o funeral e o enterro? 10:35 da manhã, pode ser? Óptimo.
  Dei-lhe o meu número de contribuinte a fim de poder incluir todas estas despesas no meu IRS, e saí, sem pensar mais no assunto.

  E aqui está como consegui ser perseguido e assombrado. De nada valeu toda a minha boa vontade, os meus esforços e a minha humanidade, agora sou assombrado pelo Filipe, dia e noite. Não me larga. Está menos truculento, agora que é incorpóreo, mas vai atrás de mim para todo o lado, e embora mais ninguém o veja, está constantemente a atazanar-me o juízo. Parece que escolhi mal o seu futuro. Não devia ser fantasma. Fantasma que se preze deve assombrar o lugar em que foi morto e procurar vingança, mas o Filipe não tem de quem se vingar: morreu sozinho. Não foi torturado nem injustiçado. E também não tem lugar para assombrar. Todos os outros fantasmas assombram uma igreja, um cemitério ou uma mansão. Os mais fraquinhos podem estar condenados a assombrar um ermo, mas nenhum, - NENHUM, repete-me ele incessantemente - assombra o banco de trás de um automóvel. É algo que não está previsto no Código Deontológico dos Fantasmas, e até a Ordem dos Fantasmas se nega a ordená-lo. Não é digno nem uma posição de futuro, agora que o carro está dado como pronto para ir para abate. E um fantasma tem que ter futuro, não é situação que dure pouco tempo. Uma vez fantasma, sempre fantasma. Aqui tem o Filipe a sua injustiça: fui eu que o injusticei ao providenciar-lhe um enterro. Quando morrer quero ser fantasma. Vou assombrar o Filipe, por esta injustiça!

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