O Pai do Vento

   Esta é uma história clássica. Há muito tempo que não a oiço, e se calhar não sou o único. Para que não se perca esta pérola da tradição oral do nosso país, registo-a aqui para a posteridade.




   Final de Maio na aldeia de Vinhozes, concelho de Viana do Alentejo. Está alegre, a localidade, embora pequena como sempre. O final da tarde de domingo está quente, mas nem de perto tão quente como virá a estar dali a dois meses. Suficientemente quente para que os aldeões se juntem na praça, debaixo do velho carvalho. Conversa-se, joga-se à sueca, um grupo de novos e velhos entoam os cantares típicos, entremeados com copos de tinto e fatias de presunto do ano anterior. Risos, cantigas, dichotes, é a alegria generalizada. A alegria genuína de quem não tem outro motivo se não um tempo agradável e a companhia dos amigos e familiares. Até o avô Bernardo foi desenterrar o velho acordeão, o qual vai tocando desafinadamente, quando o grupo coral pausa. Há crianças a correr, a jogar à bola e a andar de bicicleta, e até as mulheres saíram à rua. E no meio deste contentamento, ninguém mais eufórico que o João da Palha. Canta mais alto que os outros, bebe mais rápido que todos, conta as anedotas mais picantes, não pára um segundo, o João. É que o João tem motivo para a sua alegria: vai ser pai. E já falta pouco, que a barriga da sua Inácia não mente. Aliás, vai ser pai mais do que uma vez, porque a não ser que o bebé seja enorme, descomunal, esperam-no gémeos, trigémeos até! Ninguém sabe, os médicos não conseguem dizer ao certo, e ele não é tão crédulo que dê por certas as vozes das velhas parteiras, que lho afiançam, mas diz-lhe o coração e a barrigona da Inácia que vem ali mais do que um miúdo. E a fé é tão grande, tão sólida a convicção que até já inventou um berço para dois, criação sua, que concretizou com os seus dotes de carpinteiro amador: um berço com dois andares, como prateleiras. E também disto o João da Palha está orgulhoso. E por tudo isto ele pula, dança, canta e mete-se com toda a gente, e todos se metem com ele. Dão-lhe palmadas nas costas, chamam-lhe o papá João e fazem piadas sobre o berço que inventou. E tudo ele aceita com um riso e uma resposta afiada.

   É na taberna da aldeia, lá bem no fundo da sala sem janelas, que o calor agora já não tem contemplações e a sombra do carvalho já não é suficiente, que reencontramos o João, já em meados de Julho. Não está tão alegre, agora. Nem pulos, nem risos, nem cantigas. Está antes sorumbático, taciturno, com cara de poucos amigos e sempre com um copo a mais do que a conta. Tem andado assim desde o dia do parto. Não correu bem. Quando a Inácia deu o sinal, lá chamaram a ambulância, que a levou para Évora. O João também foi, apreensivo, claro, mas entusiasmado. Todo o caminho foi fazendo piadas para alegrar a esposa, que estava mais aflita do que ele. Nada a assinalar, na viagem. A estrada é plana e recta, faz-se num instante, sobretudo numa ambulância. Foi já na sala de partos que a coisa se complicou. O João não entrou, não quis, mas contou-lhe depois o médico o que aconteceu: estava a Inácia a fazer força, e todos prontos para receber o bebé (ou os gémeos, ou talvez os trigémeos), com uma barrigona que nem lhe deixava ver a cara, quando pfffffffffttt. Nem gémeos, nem trigémeos, nem sequer um bebé, grande ou pequeno! Só ar. Ar quente e fétido, mas ar. Nunca se tinha visto nada assim em Évora. Nem em Viana do Alentejo e muito menos em Vinhozes. Só ar! O médico ficou espantado, as enfermeiras surpreendidas, a Inácia e o João, destroçados.
Volta a ambulância a Vinhozes, para os trazer, e fecham-se ambos em casa, sem dizer palavra. Nenhum se acha capaz de confortar o outro, mas mais tarde ou mais cedo teriam que sair, e o João da Palha tem trabalho, não lhe pode fugir. Sai. Os compadres e as comadres são compreensivos, tentam animá-lo. Dão-lhe palmadinhas nas costas, pagam-lhe copos e metem-se com ele, para o animar. Não podem chamar-lhe papá João, chamam-lhe o Pai do Vento. Ele aceita com um sorriso amarelo, sabe que não estão a fazer pouco, apenas a tentar animá-lo. E o nome pegou. O João da Palha é agora o Pai do Vento e todos o tratam assim. Ele sente-se triste mas não ofendido. Mas não ri. Nem canta nem pula nem conta anedotas. Encontra-mo-lo sempre na taberna ao fim do dia, é o primeiro a chegar. Bebe um copo, dois copos, os que lhe pagam os amigos. Mas não conversa nem ri nem conta anedotas.
   E nessa tarde ígnea de Julho, está o João já mais bebido que o costume, irritadiço, nervoso. Entra o Sebastião acompanhado do irmão. São dois matulões e não trazem ar de contentes. Aproximam-se do Pai do Vento, um de cada lado e encostam-se ao balcão. Vêm tirar satisfações, querem saber porque enfiou o João dois bofetões no miúdo do Sebastião. Soltou-se-lhe o nariz, sangra que nem um porco, o petiz. O Pai do Vento não responde. Acaba o copo sem pressa e respira fundo. Olha para o pai e o tio do ofendido e explica-se:
   - Já estou habituado a que se metam comigo. Não me ofende que façam graças acerca do berço que fiz, que assoprem quando passam por mim, que mandem bocas à Inácia ou que me chamem o Pai do Vento. Mas há limites, e não admito que me venham pedir a pila emprestada para encher o pneu da bicicleta!

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