La luette
Foi na sexta-feira, se não me engano. Vinha a descer a rua e tropecei. Rapidamente percebi que não tropecei: fui rasteirado. Não se passa uma vida a jogar à bola sem perceber imediatamente a diferença. Reequilibrei-me e voltei-me para trás para ver quem era o engraçadinho. A princípio não vi ninguém, mas depois prestei mais atenção e lá estava ela, com ar trocista. Uma úvula. Dirão que as úvulas não podem ter ares trocistas, mas isso são aqueles que também diriam que as úvulas não passam rasteiras, e aquela tinha-me rasteirado. E tinha um ar trocista. E uma baguette debaixo da axila, o que me fez crer que era uma úvula francesa. Une uvule. Irritou-me aquele ar de desafio e ia esborrachá-la com o calcanhar, só por vingança, mas algo me fez hesitar. Sem perceber bem porquê apanhei-a do chão e levei-a para casa. Para a minha casa,a dela não sabia onde era. Foi só depois de a ter em cima da mesa da sala, numa caixinha forrada com papel de alumínio, que comecei a questionar o porquê de todos estes cuidados. Não tenho o hábito de apanhar do chão úvulas desconhecidas, nem sequer francesas, muito menos levá-las para casa e tratá-las como se fossem gatinhos bebés encontrados junto do lixo. A verdade é que me senti compelido a fazer tudo aquilo, e o compelimento vinha da úvula. Olhei-a com ar de poucos amigos, mas ela continuou com o seu ar trocista e fez-me aconchegá-la com um bocadinho de algodão. Não sei bem como foi, mas parecia que essa ideia me tinha nascido no momento em que olhei para ela, e não consegui evitar concretizá-la. Reparei que a baguette tinha mudado de axila e estava mordiscada. "Estranho", pensei, "a úvula não tem boca, não pode mordê-la".
- Não preciso de boca.
O pensamento surgiu-me tão claramente como se tivesse sido dito em voz alta, e embora tivesse ecoado apenas na minha cabeça, foi tão claro que até lhe consegui identificar o tom de voz: trocista, com pronúncia francesa.
- Quem és tu?
Falei em voz alta, mas provavelmente não teria sido necessário: as úvulas não têm ouvidos.
- Eu sou uma úvula e estou aqui para conquistar o mundo.
Ao princípio não acreditei, mas ao fim de algum tempo convenci-me. Afinal trata-se de um plano há muito congeminado, e que tem vindo a ser posto em prática sem que a raça humana tenha dado conta. Aqui está como se passou.
Ninguém se apercebe, mas as úvulas são coisa recente. Na idade média as pessoas não tinham úvula. Nem lhe sentiam a falta, porque falta não fazia. Ainda hoje poucas pessoas sabem para que serve a úvula, e quase ninguém lhe dá atenção, mas naquela altura nem sequer existiam. Não há registos de alguém alguma vez ter morrido por ter levado com uma flecha na úvula, nem ter adoecido com a úvula inchada, e nem o Leonardo Da Vinci alguma vez desenhou algum círculo ou quadrado com uma úvula de braços abertos. E no tecto da Capela Sistina há dedos, barbas, coxas, mamas, braços e panças, mas não há úvulas. Nem nenhum dos doentes que Jesus miraculosamente curou se queixava da úvula, nem os barbeiros que andavam de terra em terra a tirar dentes e a sangrar as pessoas alguma vez colocaram sanguessugas na úvula de algum paciente. Não havia úvulas. As úvulas apareceram no séc XVIII, discretamente. Chegaram à Terra num tupperware gigantesco que amarou junto à fossa de Mindanao e de lá, do fundo do mar, se expandiram. Multiplicaram-se numa instalação secreta a que chamaram o Uvulatorium, e espalharam-se cuidadosamente pelo mundo inteiro através de oceanos, mares e rios. Daí, instalaram-se na garganta das pessoas através de um processo discreto conhecido por uvulação. A generalidade das pessoas nem se apercebia desse processo, embora as mulheres lhe fossem mais sensíveis que os homens e ficassem ainda mais estranhas e implicativas quando estavam a uvular. Os homens limitavam-se a beber mais uma cerveja. Mas não se falava nisso, em parte porque no séc XVIII ninguém ligava a essas coisas, mas sobretudo porque não havia facebook e a informação não era cruzada como é hoje. Chegou o dia em que cada pessoa tinha uma úvula e todos pensaram que ela sempre lá estivera. E daí as úvulas começaram a manipular o mundo, criando dissenções e diferenças que dividem a raça humana. Ou as raças humanas, as quais raramente se deram bem. As úvulas puseram brancos contra pretos, amarelos contra brancos, castanhos contra pretos e vermelhos contra todos, mas índios, indianos, mongóis, bantus, tuaregues ou escandinavos, todos tinham uma úvula cor-de-rosa, na qual ninguém tocava ou reparava. Essa imunidade persiste até aos dias de hoje. Cortam-se unhas, apara-se o cabelo e depilam-se os sovacos, mas na úvula ninguém toca. Arrancam-se dentes, tiram-se apêndices, extraem-se as amígdalas e doam-se rins, mas niguém manda extrair a úvula. Põem-se piercings no nariz, no umbigo, nas sobrancelhas e na língua, mas na úvula não. Fazem-se tatuagens na cara, nas costas e no tornozelo, mas a úvula continua cor-de-rosamente imaculada. Vestem-se casacos, calçam-se sapatos e luvas e usa-se cachecol, mas ninguém agasalha a úvula. Adoece-se com amigdalite, faringite e laringite, mas se alguém ouvir falar em uvulite pensará que é um pó para tirar a ferrugem dos varões dos cortinados.
E tudo isto para quê? É que foram as úvulas quem, através do controle da mente humana, levou à criação de todas estas avarias, que as pessoas infligem a si próprias, cuidando que o fazem voluntariamente para se distinguirem de todos os outros. Afinal as úvulas permanecem intocadas enquanto as pessoas se mutilam destas e outras formas. E porquê? Por vingança. É que as úvulas nunca aceitaram que lhes chamassem campainhas!
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