Malapata
A vida corre-me mal.
Não é de agora, já dura há algum tempo: problemas em casa, dificuldades no trabalho, complicações de saúde, o Jorge Jesus no Sporting, tudo chatices. Para já não falar na minha vida sexual... Dizem que quem tem azar ao jogo tem sorte no amor, mas asseguro-vos que não passa de superstição das mais tolas. Eu tenho azar em ambos.
Enfim, algo precisa de ser feito e já comecei a tratar disso. É evidentemente um caso agudo de má sorte, por isso comecei a usar com frequência expressões como "valha-me Deus" e "minha Nossa Senhora" na esperança de alterar o meu fado por intervenção divina. Nada feito. Aparentemente, devoção interesseira de última hora não é solução. Desenganem-se todos vós que ides à igreja depois de pecar: perdeis o vosso tempo. Então comprei um desses livros do tipo auto-ajuda, mas era tão disparatado que não passei do 1º capítulo. E a má sorte continuou: problemas com o carro, discussões com o vizinho e um pé torcido.
Altura de recorrer a argumentos mais persuasivos: comprei uma pata de coelho e fui procurar um trevo de quatro folhas. Azar: não só não encontrei nenhum como me arranhei numas silvas e fui picado por um bicho qualquer que me deu uma comichão dos diabos. Dos diabos, digo-o enfaticamente. Perdi a fé nos santos.
Foi nesta altura que a minha educação clássica veio ao de cima e começou a dar frutos: do que eu precisava era de um sacrifício. Não daqueles que os políticos nos pedem, desses já faço todos. Resolvi apelar aos Deuses e fazer um sacrifício. Vou imolar um boi.
Imolar um boi pareceu sempre dar bom resultado quer a gregos, troianos, aqueus ou dánaos, mas é certamente mais difícil que amolar uma tesoura. Primeiro precisava de um boi. Mais azar: à porta de todas as ganaderias a que acorri, havia uma patrulha de acérrimos ofensores das touradas que me impediram de comprar um toiro para imolar. De nada me serviu explicar que não era para tourear, era apenas para o matar. Não, também não era para comer, era só para matar... Inabaláveis, recusaram-se a abalar e deixar-me comprar o boi em paz, e na verdade muita sorte tive em sair dali com o couro intacto, que são mais importantes os direitos do touro de praça que os de cidadão azarado.
Novo plano: vou sacrificar um cordeiro. E onde se encontram cordeiros por sacrificar? Nos talhos e supermercados, já estavam sacrificados, nos campos só encontrei cabritos, e quando finalmente descobri um anho adequado, descobri também que desde que clonaram a Dolly, já não há confiança nos borregos, os Deuses desconfiam e não aceitam a oferenda de bom grado. Nada de cordeiro.
Enfim, altura de subir a parada. Optei por sacrificar o primogénito. Não sei quem foi o idiota que se lembrou desta opção, mas nos dias que correm já não é viável. Nos tempos bíblicos, antes da TVI, as famílias eram numerosas, e sacrificando o primogénito sobrava uma carrada de filhos para lavrar os campos e cuidar do sacrificante na terceira idade, mas eu só tenho um primogénito. Se o sacrificar fico sem nenhum, e depois quem me irá pôr no lar? Além do que lhe ganhei alguma afeição. Mais do que a um boi ou um cordeiro...
Última cartada: vou sacrificar uma virgem. Ora isto é que é uma cartada! Ninguém resiste ao sacrifício de uma virgem. Com isto até vou acertar no totoloto, e vai ser só gajas atrás de mim! Só me falta encontrar uma virgem. Parece fácil, mas não é. Uma virgem sacrificial tem que ter pelo menos uns 17 aninhos, ou isso, porque se tiver menos é demasiado parecido com o sacrifício do primogénito. Se tiver mais é porque é falsa. Corri as escolas secundárias, mas não encontrei ninguém com ar de virgem. Ainda perguntei a uma ou duas, mas riram-se na minha cara e desandaram. Houve uma que ainda hesitou, mas quando lhe expliquei que era para um sacrifício disse que tinha que ir pedir à mãe e nunca mais a vi. Pus um anúncio no Correio da Manhã: "Virgem, precisa-se para sacrifício". Apareceu numa página com fotografias e números de telefone, entre bumbums de luxo e morenas gulosas, e recebi até diversos contactos, de gente disposta a fazer uma quantidade de coisas interessantes e algumas acrobáticas, mas nenhuma delas me pareceu que fizesse sacrifício. Muito menos que fosse virgem. Procurei no e-bay. Não foi fácil. Em que secção se encontram virgens no e-bay? Procurei em "lazer" e em "coleccionáveis", depois em "antiguidades" e "peluches", mas foi na secção de "tudo o resto" que encontrei as virgens. Não havia muitas: 2 para alugar e 2 para vender. Para alugar, não servia, não poderia devolvê-la depois do sacrifício, e das que se vendiam, uma delas era em 2ª mão. Não sei como se pode vender uma virgem em 2ª mão. Que garantia dá? Uma virgem que já tenha sido usada deverá ser reclassificada. Licitei a outra. Tinha um certificado de virgindade. Em seguida tive que esperar. E esperar... Não aconteceu nada. Aparentemente, não há muita gente interessada em virgens, mesmo novas. Enfim, lá consegui ganhar o leilão, e foi com agrado que verifiquei que tinha os portes incluídos. Já sentia a minha sorte a mudar! Só depois constatei as despesas de embalagem: astronómicas. Parece que uma virgem é uma coisa delicada, que requer cuidados especiais. Agora estou convicto que a minha sorte vai mesmo mudar. Só falta sacrificá-la. É o que farei assim que puder, porque isto vai de mal a pior: multas de trânsito, impostos duplicados, problemas de condomínio...
Espero sobreviver até que a virgem chegue. Está retida na alfândega.
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