O pacato cidadão
Severino Cássio é uma pessoa vulgar. Como eu, como os meus vizinhos, amigos, colegas de trabalho e milhões de outras pessoas por esse mundo fora. Não é rico nem pobre, não tem esqueletos no armário nem fetiches tenebrosos. É um vulgar chefe de família, com a sua esposa vulgar e os seus medianos 1,47 filhos que trata com regular cuidado e afeição. Almoça de pé num snack bar e tem um cão de porte médio que passeia depois do jantar quando vai despejar o lixo, além de jogar às cartas com os amigos aos sábados à tarde no clube desportivo onde é vogal da assembleia geral. Pessoa afável e bem disposta, que muitos respeitam e apreciam pela sua bonomia. Nem todos são apreciadores de bonomia e há quem gostasse de o ver destituído do seu cargo de vogal da assembleia geral, mas outra coisa não seria de esperar. Todos gostarem dele não seria normal, e Severino Cássio é uma pessoa vulgar. Tem um vulgar emprego de secretária numa seguradora onde trata de assuntos pouco interessantes e recebe o salário médio. Conduz um vulgar automóvel de 5 portas, nem muito velho nem muito novo, no qual faz os medianos 15000 km anuais. É nesse automóvel que se desloca para o emprego.
Depois do costumeiro pequeno almoço de leite e torradas desce as escadas do 2º andar onde vive (nem muito alto nem muito baixo) e toma um café no café da esquina antes de se dirigir ao carro, que estaciona religiosamente no estacionamento público da praceta onde vive. Nesse curto percurso cruza-se com outras pessoas normais: a vizinha que veio passear o cão, o capitão reformado que vai comprar o jornal, a menina que faz o seu jogging diário e o ciclista matinal que vai fazer os seus quilómetros. A todos cumprimenta com a bonomia que o caracteriza e todos o cumprimentam com educação e um aceno, excepto o ciclista, que tem medo de cair se tirar as mãos do guiador. É com satisfação que o bonómono abre a porta da viatura para dar início à sua deslocação diária. E é nesta altura que Severino Cássio se transfigura.
Naquele posto de controle já não se sente um pacato cidadão. A bonomia já não mora ali. Arqueiam-se-lhe as costas, as veias da fronte sobressaem e os caninos crescem. Enquanto engata a marcha-atrás range os dentes e começa por se queixar daquele bandido que estacionou demasiado encostado ao seu carro. A marcha-atrás arranha um pouco, o que é motivo para invectivar aquele chaço, que já estava na altura de ser trocado. Depois recua com nervosismo e trava de repente para não acertar no poste da luz, que uns imbecis puseram ali, onde não ilumina nada de jeito e atrapalha o estacionamento. Em seguida arranca. E imediatamente pára, porque a besta da vizinha anda a passear o cão na passadeira e o lulu tem as pernas curtas, demora o seu tempo. Demasiado tempo. Qualquer dia passa-lhe por cima. E da velha, raios-a-partam. Finalmente pode seguir. Já vai tarde, tem que acelerar, mas com a pressa quase raspa num carro em sentido contrário: teve que desviar-se da vaca que anda a fazer o jogging. A cabra anda no meio da estrada em vez de correr no passeio. Há de morrer atropelada e é bem feita. Ah, uma rotunda! Olha para a esquerda e quase tem um acidente. O atrasado mental que vinha na faixa de fora, em vez de sair logo, continuou e atravessou-se à sua frente. Buzina-lhe com veemência, mas o outro limita-se a levantar-lhe o dedo e já desapareceu na próxima saída. Não é a dele, a sua saída é a terceira, mas o sacana que vai à sua frente vai a pisar ovos, deve estar de férias. E pára junto à sua saída, hesitante. Severino Cássio já não se contenta com a buzina, chama-lhe nomes de dentro do carro, como se outro o ouvisse. Enfim, lá segue, mas a passo de caracol: é o ciclista que não lhe acena que vai à sua frente. Circula no meio da estrada o filho da mãe, insensível à fila de carros que marca passo atrás dele. Em Severino Cássio já não resta ponta de bonomia. Grita, resfolega, espuma dos cantos da boca e dá murros no volante. Felizmente está quase a chegar ao destino. Anda para trás e a para a frente, maldizendo a sua vida, enquanto procura um lugar para estacionar. Enfim, lá deixa o carro estacionado em cima do passeio, quase numa curva, ameaçando antecipadamente em surdina o polícia que se atreva a multá-lo. Sai do carro e recupera a bonomia e as boas maneiras.
Jamais Severino Cássio deixará de levar o carro para o emprego. Que seria da sua bonomia sem aqueles terapêuticos 350 metros?
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