Conto de Natal
Era já dia 23, mas os Coutinhos não puderam despachar-se mais cedo para ir passar o Natal com a família à terra, como faziam todos os anos desde que se haviam mudado para Lisboa. Havia mais de uma dúzia de anos que a mudança acontecera, ainda os Coutinhos mais novos não haviam nascido. Saíram alfacinhas, ao contrário dos progenitores, beirões de Fornos de Algodres. E para Fornos de Algodres se dirigiam neste 23 de Dezembro, quase dia de consoada, para passar as Festas com pais, avós, tios e sobrinhos. As últimas horas foram passadas nos centros comerciais, em busca do cachecol para o tio e daquele brinquedo para o sobrinho, que em Fornos a variedade é pouca, e quem vem da capital é quase como se viesse de França: tem que trazer algo de novo e caro, para mostrar como corre bem a vida. Enfim, as formalidades aquisitórias cumpridas, estavam já a caminho, imbuídos de espírito natalício, discutindo quantas ovelhas devia levar o presépio e cantando canções de Natal. Foi até o Coutinho mais novo quem insistiu que o pai pusesse o cd dos Pequenos Cantores do Estoril entoando o Adeste Fidelis, que ele aprendera na escola e queria treinar em karaoke para à noite se exibir perante os avós babados. O sr. Coutinho, na expectativa de se babar perante os babados progenitores, esticou a mão para o porta-luvas, tirou os olhos da estrada e enfeixou-se na traseira de um camião que seguia devagar na CREL. Com o embate o camião oscilou, foi à berma e deixou cair uma das botijas de gás que transportava, a qual ressaltou no rail de protecção e acabou por entrar como uma bomba pelo vidro da frente de um comercial branco que seguia na faixa da esquerda. Entrou pelo lado do passageiro, que não transportava, mas o condutor, que acabara as suas entregas de material de escritório em Carnaxide, foi atingido na perna direita e perdeu o controle da furgoneta, que depois de um zigue para a direita e um zague para esquerda bateu no rail da esquerda e capotou. Era o Luís quem conduzia, e em vez de ir à Missa do Galo com a mãe nessa noite, acabou por passá-la nas urgências de Santa Maria. Voltaria a casa na manhã seguinte, sem mais do que uma perna partida, mas com uma Missa do Galo a menos e uma passagem do ano arruinada, apesar do apartamento que já alugara em Vilamoura com uns amigos; nada de discotecas para o Luís, nesse ano. A mãe também faltou à missa: ficou em casa a rezar Ave Marias pela saúde do filho, e a benzer-se repetidamente na esperança de que isso o fizesse voltar mais depressa e salvo, que são já não viria.
Foi o Cabo Fonseca da GNR quem tomou conta da ocorrência. Foi também ele quem ajudou a retirar a menina Coutinho de dentro do carro, ainda com vida. Viria a falecer a caminho do hospital, na ambulância. Os demais Coutinhos não sobreviveram tanto tempo. Consta do auto que tiveram morte imediata. Quando o Cabo Fonseca saíu de serviço, 14h e muita papelada depois, foi também ele juntar-se à família, que preparava alegremente a consoada. Mas não foi uma alegre consoada a que se viveu em casa dos Fonsecas, pois o nosso cabo estava de poucas palavras, macambúzio e irritadiço. Não lhe saíam da cabeça os Coutinhos e do motivo da sua má disposição não deu conta a ninguém, mas repreendeu severamente um dos Fonsecas pequenos por causa do barulho que fazia com as suas brincadeiras, o que ninguém compreendeu e deu até azo a uma discussão familiar que azedou a natalícia refeição. Dali até à meia-noite pouco se falou, e mesmo a distribuição dos presentes foi pouco entusiástica. Era o nosso cabo, com a sua barriga de GNR, quem costumava fazer de Pai Natal, mas nem ele se ofereceu, nem ninguém teve coragem de lhe pedir.
De nada disto deu conta o telejornal. Mencionou apenas o acidente e referiu que apesar dele a Operação Natal fora um sucesso e houvera menos 4% de acidentes neste ano.
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