A Mentira Perfeita

   Talvez tivesse sido diferente se Alfena da Serra fosse um lugar maior. Talvez as coisas se tivessem passado de outro modo se as pessoas ali não fossem tão crédulas. Talvez tudo não tivesse acabado assim se ele fosse menos convincente. Mas Alfena da Serra era pequena, as pessoas crédulas e Augusto Sousa entusiástico.
   Desde pequeno que mentia. Mentia aos pais, aos amigos, aos pais dos amigos e aos amigos dos pais. Mentia porque era irresponsável, mentia porque era travesso e mentia porque sim. Mentia por necessidade, mentia por hábito e mentia por medo. Mentia com gosto e mentia com arte. Mentia com a arte de quem mente por gosto, e com o gosto de quem domina a arte. E tamanha era a arte de Augusto que por o saberem mentiroso não duvidavam que mentia mesmo quando falava verdade. E a verdade em que não acreditavam era a mentira que o artista não chegava a dizer. Era um verdadeiro mentiroso.
   Augusto cresceu mentiroso. Mentia na confissão, fazia batota ao jogo e copiava nos exames. Não por necessidade, que o seu pecado era a mentira, e os exames fáceis para quem exercitava a inteligência com mentiras constantes. Verdadeiras obras de arte, as  augustas mentiras, cheias de pormenores, detalhes e congruências. Não havia ponta solta, beco sem saída ou alibi não confirmado, nada por onde se lhe pudesse pegar, e embora todos os Alfenenses o tivessem por mentiroso, jamais algum o apanhou numa mentira.
   E Augusto foi mentindo pela vida fora. Fez disso o seu hobby, a sua paixão, a sua profissão.
   Depois de ter terminado a escola, com notas regulares, discretas, mas indubitavelmente melhores que o esforço que lhes dedicara fazia prever, empregou-se como vendedor de carros usados. Vendia bem. Tão bem que tiveram que o despedir, pois as garantias que o patrão era obrigado a dar revelaram-se mais dispendiosas que o lucro das vendas.
   Mudou-se para o ramo dos seguros. Angariava como ninguém, mas vivia insatisfeito. Era mentiroso, mas não intrujão.
   Dedicou-se à política. A competição era feroz, mas conseguiu ser rapidamente eleito Presidente da Junta de Freguesia. Não de Alfena da Serra, que aí todos o conheciam, e ninguém votou nele, mas de uma freguesia do concelho vizinho, onde não o conheciam tão bem. Da Junta passou à Câmara, e quando estava na calha para deputado, desistiu. Era mentiroso, mas não ladrão.
   Foi jornalista. Fazia reportagens sem sair de casa, acerca de eventos inventados, ocorridos em localidades ilocalizáveis e protagonizados por figuras figuradas e figurativas. Cansou-se. O público que lia jornais ou via noticiários engolia tudo sem reflectir, tudo aceitava sem questionar. Mais valia dizer a verdade e isso estava fora de questão. Era mentiroso, não mentecapto.
   E Augusto Sousa seguia mentindo.
   Mentiu ao banco quando abriu uma conta.
   Mentiu ao fisco quando pagou os impostos.
   Mentiu à esposa quando lhe disse que sim.
   Teve três filhos, nenhum era seu.
   Reformou-se jovem, mentiu na idade, embora já não estivesse em idade de mentir.
   Fechou-se em casa, com um computador. Lançava boatos na internet, influenciava os resultados das bolsas e manipulava as apostas desportivas.
   Mas andava cansado. Uma vida inteira a enganar, a mentir por mentir, sem razão aparente ou gordo proveito começava a cansar.
   Subiu a parada. Ameaças de bomba, pirata informático, Alfena Leaks, mas nada já o satisfazia, e foi assim insatisfeito que mentiu aos amigos e disse que ia de férias. Enforcou-se na garagem, com uma corda de alpinista, e foi chorado por todos, pois embora mentiroso nunca fora maldoso.
   Subiu ao céu, mentiu a São Pedro e acabou no inferno. E o inferno de Augusto Sousa era o Céu, onde não havia mentiras.

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