Abraço Solitário

   Era uma vez um abraço à espera de ser usado. Estava esquecido na casa de uma pessoa amarga, que o tinha para lá guardado no fundo da despensa, embora se saiba que o lugar dos abraços por usar é no roupeiro. Um dia o abraço cansou-se de esperar por ser usado e saiu à rua à procura de quem o quisesse. Saíu ostensivamente, batendo com a porta da despensa e exibindo o seu flamejante cheiro a bafio, mas a pessoa amarga não o viu, não o ouviu, e não o cheirou. Ou então fingiu que tinha os sentidos obstruídos, pelo que o abraço acabou mesmo por sair para a rua.
   A rua estava deserta. Era uma rua residencial, e àquela hora as pessoas estavam no emprego, não circulavam por ali. Cruzou-se com o carteiro e dirigiu-se a ele de braços abertos, mas o carteiro trazia as mãos cheias de contas e extractos bancários e publicidade enganosa e nem reparou no abraço. Os carteiros já não trazem cartas, essas vêm por correio electrónico ou sms, e a última coisa de que um carteiro precisa é de um abraço a atrapalhá-lo. Ainda o fazia cair da lambreta!
   O abraço era compreensivo, como todos os abraços (excepto os dos políticos em campanha eleitoral), e percebeu o ponto de vista do carteiro, portanto continuou rua abaixo, onde uma miudinha passeava um cãozito escanzelado. Já se aproximava quando o cãozito acabou o seu xixi contra o pneu de uma bicicleta e a rapariguinha o arrastou ganindo e ofegando para dentro do prédio, onde o pôs na varanda para poder voltar ao seu episódio da Floribela. O amigo da casa em frente, que observava da janela, percebeu a intenção do abraço e teve vontade de corresponder, mas os pais tinham-no avisado de que não devia aceitar nada de estranhos, portanto fechou a janela e retirou-se. Os pais eram cautelosos e responsáveis, mas não lhe davam abraços. Estavam muito preocupados a dar-lhe conselhos.
   O abraço ficou triste, mas não desmoralizado. A próxima esquina era de uma rua comercial, e pessoas necessitadas de abraços não faltariam ali. E não faltavam mesmo. Pessoas havia-as às dezenas, mas nenhuma se apercebeu do abraço. Em vão se aproximou de uma, duas, três pessoas, mas todas passavam pelo abraço sem erguer os olhos do chão ou do telemóvel, e houve mesmo um senhor careca e engravatado que lhe deu um encontrão e seguiu caminho sem pedir desculpa. Um rapaz jovem, com ar de quem necessitava de um abraço, olhou para ele, mas teve medo que fosse um truque para lhe roubarem a carteira e esquivou-se.
   Entrou numa sapataria, mas o rapaz que lá trabalhava estava ocupado a arrumar caixas de sapatos na prateleira de baixo e não o viu, e não é possível abraçar eficientemente uma pessoa agachada. O abraço deu meia volta e saiu.
   Mais à frente havia um café. Os cafés são locais de encontro, conversa e confraternização. Sítios de amigos. Locais de risos e apertos de mão efusivos. E abraços. Mas aquela era uma rua comercial, e as pessoas acotovelavam-se ao balcão para tomar uma bica ou engolir à pressa um croissant e não tinham cá tempo para abraços. O café tinha até duas mesas, pequenas, mas ambos os ocupantes estavam tão embrenhados na leitura das páginas desportivas do jornal que nem levantaram os olhos.
   O abraço não estava já apenas triste, estava desmoralizado.
   Entrou numa agência bancária. Os funcionários estavam ocupadíssimos a preencher formulários e calcular cálculos complicados e a telefonar para outras agências bancárias onde se preenchiam outros formulários e se faziam os mesmos cálculos, e os clientes estavam tão irritados com os motivos que os faziam perder o seu tempo precioso numa dependência bancária, que mais depressa teriam uso para um pontapé ou um insulto do que para um abraço.
   Voltou à rua e deu de caras com a pessoa amarga de quem tinha fugido. Ficou tão contente por a ver que num impulso se abraçou a ela. A pessoa amarga não deu por nada, mas quando regressou a casa e à sua despensa vazia, vinha a assobiar baixinho o Fado da Mouraria.

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