Outside Looking In

   Uma pedra não é habitualmente um objecto digno de grande reparo, mas uma pedra que jaz frente à nossa porta, acaba necessariamente por o ser. Eurico começou por a considerar um empecilho, mas a sua presença omnipresente fê-lo dar-lhe outro valor. Era de um tamanho considerável, e erguia-se isolada a não mais que alguns passos da porta da sua casa. A casa era antiga, a pedra mais ainda. Sempre ali estivera, desde a infância de Eurico, e ali continuava, agora que a casa era sua, herdada de sua avó. Nunca pensou removê-la, sabia que era demasiado grande e enterrada no solo para que a pudesse tirar, e ainda que o conseguisse deixaria um buraco ainda mais conspícuo que o calhau. Por isso usava-o. Pousava em cima dela os objectos que às vezes carregava para casa; sentava-se em cima dela para descansar; escondia nalguma reentrância as chaves de casa quando saía; fazia dela mesa onde saboreava algum pedaço de queijo numa tarde de Verão; usava a sua sombra para aí pousar o canjirão; apoiava nela as alfaias em vez de as deixar tombar no chão; calculava as horas pelo comprimento da sua sombra. A pedra era banco, mesa, cofre, relógio. Conhecia-a bem. Conhecia as arestas, as reentrâncias. Sabia onde se escondiam os bichos-de-conta e de que lado crescia o musgo. Todas as saliências que podiam apoiar o cabo de uma enxada e os buraquinhos onde esconder uma chave. Havia um ponto onde podia equilibrar na perfeição a garrafa da cerveja e uma saliência onde pousar a sandes de queijo.
   Um dia entretinha-se distraidamente a desenhá-la com um pau no pó do caminho quando se apercebeu de todos estes pormenores. Foi precisamente por não conseguir registar todos esses pormenores no pó do caminho que se levantou e foi buscar um bloco e um lápis para a desenhar melhor. Eurico nunca tinha desenhado, e o resultado não foi brilhante, excepto aos seus olhos. 
   No dia seguinte, enquanto comia a sandes de queijo e bebia o seu vinho, ao fim da tarde, lembrou-se do desenho. Foi buscá-lo, e não lhe pareceu tão bom como no dia anterior. Talvez a base não fosse tão plana, como no desenho, e possivelmente a pedra seria mais irregular no topo. Fez as necessárias correcções, e depois mais algumas. Então lembrou-se que tinha em casa uma tela e algumas aguarelas. Não se recordava do motivo pelo qual as tinha, mas sabia onde estavam, pelo que resolveu ir buscá-las e aventurar-se numa pintura mais séria. Uma pedra tão bonita valia esse esforço. Afinal não foi esforço algum, a obra saíu-lhe bem e rapidamente concluiu a pintura da pedra com todos os detalhes que tinha posto no desenho.
   No dia seguinte, ao chegar a casa, vinha já com a ideia de aperfeiçoar a pintura. Com um retoque aqui e uma pincelada ali, ia ficando cada vez mais perfeita. Esmerou-se na perspectiva, aprofundou o ponto de fuga e o quadro estava praticamente tridimensional. Deitou-se tarde e ainda a pensar em pormenores que devia corrigir ou acrescentar.
   No dia seguinte largou o trabalho mais cedo e correu a montar o cavalete para continuar a sua obra. A pedra do quadro estava já quase tão real como a verdadeira, mas havia ainda mais uma pincelada que faltava aqui, um jeitinho ali, algo que não estava ainda completamente a seu gosto. A cor não era exactamente aquela, mudou-a. Tão ligeiramente que mais ninguém teria notado, mas para Eurico teria sido impossível deixá-la assim. Mais um dia e a pintura estaria acabada.
   No dia seguinte não foi trabalhar. A pedra era obsessão e a ânsia de terminar a obra prevaleceu. Quando a ia dar por terminada, achou que não fazia sentido deixar uma pedra sozinha num quadro. Juntou-lhe a terra onde assentava e a gravilha que a circundava. Acrescentou cada erva que crescia à sua volta, deu a cada uma o tom exacto que a luz do final do dia lhe conferia e não esqueceu as mordidas de lagarta ou a gosma do caracol.
   No dia seguinte apareceu a D. Arminda. A D. Arminda tinha-se constituído em tia de Eurico quando a avó falecera. Não era família, mas por qualquer motivo metera-se-lhe na cabeça que Eurico não conseguiria tomar bem conta de si próprio, e por isso aparecia com regularidade para lhe lavar a roupa, trazer uma sopa ou dar um jeito à casa. Eurico não se importava. Qualquer das três era bem vinda e a D. Arminda gostava daquele serviço, fazia-a sentir-se útil e importante, achar que controlava alguma coisa na vida dele. Naquele dia apareceu porque Eurico não fora trabalhar, e cuidou que estivesse doente e precisasse de uma canja ou qualquer tisana ou infusão. Surpreendeu-se com o trabalho dele, mas não fez comentários, além das observações habituais sobre os acontecimentos da vila, as quais ia fazendo enquanto dava volta às tarefas a que se impusera. Eurico ouvia-a ao longe, absorto na sua pintura, e quase se esqueceu de lhe agradecer e despedir-se quando ela se foi. A tela estava cheia. Já não tinha apenas a pedra, mas também a vegetação que a reodeava e parte do caminho. Quando se foi deitar, já Eurico decidira que precisava de uma tela maior, para acrescentar algumas das coisas que davam à pedra o enquadramento que precisava. Aquela não era uma pedra qualquer. O quadro estava terminado, mas não completo. Teria que ser um tríptico.
No dia seguinte foi à cidade e voltou com telas e tintas. Pendurou A Pedra na parede da sala e iniciou a pintura da segunda tela, que complementava a primeira. Nesta desenhou o caminho, em pormenor. Com a cerca e as árvores e a vala e o monte lá ao fundo. Tudo com grande pormenor. Demorou dias a fazê-lo. Havia sempre qualquer coisa que se tinha esquecido de acrescentar. Até a D. Arminda aparecia na pintura, pequena, lá ao fundo, enquanto se aproximava da casa com a cesta da merenda que um dia achara que Eurico deveria comer. Eurico já não pintava na rua, observando a paisagem: pintava de memória, porque a conhecia bem, e a sua memória fornecia-lhe pormenores em abundância, nem todos reais. Afinal, aquela macieira já não tinha maçãs, e a bétula lá do fundo tinha sido cortada para dar acesso à propriedade do vizinho.
    Passou o tempo e a pintura de Eurico não tinha fim. Já não era um tríptico era um quadríptico, depois um políptico. Pintou o que estava por trás da pedra, o que estava à direita e à esquerda. Pintou o céu que lhe estava por cima e pintou-o de todas as cores que o céu teve. Era um céu matinal, estrelado, tempestuoso, brilhante, ao lusco-fusco, e tudo isto ele conseguiu pintar sobre a pedra e ainda incluir os milhafres e os gaios que a sobrevoaram, e as nuvens que a taparam e até o granizo que caíu uma vez.
   D. Arminda continuava a aparecer, cada vez com mais frequência porque Eurico precisava agora verdadeiramente dela. Já não tomava conta de si próprio, apenas pintava. Pintou o que estava à frente da pedra, a sua própria casa e o que estava dentro de portas. E dentro de portas estavam quadros, muitas telas que se ligavam umas às outras e se complementavam e se sobrepunham em sítios. Cada uma delas cheia de pormenores, de detalhes, de preciosismos; cada risco, cada pincelada, cada dedada cuidadosa e precisamente pensada e inserida.
  Passaram meses, passou um ano, e depois dois. Eurico pintava obsessivamente. Retocava interminavelmente cada um dos painéis que cobriam agora todas as paredes e até o tecto. A D. Arminda vinha diariamente com sopa, broa e fruta que obrigava o seu protegido a comer. Eurico só largava as tintas e pincéis quando ia à cidade comprar mais tintas e telas. Estava magro, barbudo e cabeludo.
   Deitou uma parede abaixo, aumentou a casa para poder acrescentar aquilo que faltava, e o que faltava já não era apenas o que via. Pintava aquilo que tinha sido, às vezes aquilo que podia ter sido, ocasionalmente o que gostaria que tivesse sido. No caminho que retratava lá estavam todas as pedras que já lá tinham estado, todas as ervas que o sol já tinha queimado, todas as folhas que já tinham caído das árvores. Estava também a sua velha bicicleta, o cão que tinha tido em criança, os livros que tinha lido. Estava a sua avó, estava a sua mãe e até o pai, que nunca tinha visto.
    D. Arminda já tinha até dificuldade em entrar na casa. Os quadros sucediam-se em camadas, uns à frente dos outros como folhas de um calendário ilustrado com todas as coisas de que Eurico se lembrava. Às vezes demorava a encontrá-lo; podia estar a pintar uma tela nova que iria complementar o riacho que corria à direita da pedra, a acrescentar algo ao céu outonal, ou apenas a retocar alguma pena de um pardal que afinal não correspondia ainda exactamente à realidade. O caminho que se estendia para além da pedra dava agora acesso à igreja onde ia dantes com a avó, à escola que tinha frequentado em criança e à loja onde ia comprar as telas. E todas as crianças brincavam alegremente e todas as pessoas à saída da missa tinham um sorriso, e na loja de tintas não faltava nenhuma das que ele precisava. Na pintura de Eurico não havia lugar a negrumes ou infelicidades. À sua bicicleta não faltava o travão da frente, o padre não era careca e avó não coxeava. E na pintura de Eurico ouvia-se o cantar dos pássaros e até o coaxar das rãs era alegre.
   D. Arminda chegou um dia e não o viu. Procurou entre os quadros, espreitou entre as folhas da figueira desenhada à esquerda da cozinha, chamou por ele e não teve resposta, acabou por deixar a a sopa a broa e a fruta em cima da pedra, cá fora. Não era a primeira vez que acontecia.
   E embora Eurico nunca mais fosse visto, nem D. Arminda nem ninguém jamais reparou no desenho das pegadas que seguiam caminho fora e na nova figura que aparecia entre a mãe e a avó.

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