O Patrãozinho
Estava sentado de encontro à parede, aproveitando o calorzinho do sol de fim de tarde, ouvindo os pássaros e observando uma aranha que teimava em reconstruir a teia que ele diariamente destruía na ombreira da porta. Nunca se arrependera de ter trocado a sua casa de Setúbal para viver neste recanto alentejano. Sete quilómetros até à vila mais próxima não era nada, e com tv por cabo e internet era como se não se tivesse nunca afastado dos amigos
citadinos. Alguns deles via-os até mais amiúde, porque gostavam de o vir visitar ao campo ao fim de semana, quando enquanto vizinhos na grande cidade quase não se encontravam. Alguns invejavam-no em segredo, outros sem o ocultar, mas nem todos tinham a sorte de poder trabalhar a partir de casa, e menos ainda tinham a coragem de largar os velhos hábitos afastar-se das correrias que sempre tinham conhecido. Absorto nestes pensamentos quase não reparava na figura que subia o caminho. Tentou reconhecê-la, mas contra a luz do pôr-do-sol não era fácil. Percebeu que caminhava erecto, num passo regular, nem lento nem rápido, e ficou a imaginar se se lhe dirigia, ou se apenas seguia o caminho à beira do qual se erguia a casa que mandara reconstruir. Estava já suficientemente próxima para ver que se tratava de um homem de compleição sólida, que tomou decididamente a direcção da casa e se aproximou para lhe falar. Pousou no chão o saco que trazia e cumprimentou-o:
citadinos. Alguns deles via-os até mais amiúde, porque gostavam de o vir visitar ao campo ao fim de semana, quando enquanto vizinhos na grande cidade quase não se encontravam. Alguns invejavam-no em segredo, outros sem o ocultar, mas nem todos tinham a sorte de poder trabalhar a partir de casa, e menos ainda tinham a coragem de largar os velhos hábitos afastar-se das correrias que sempre tinham conhecido. Absorto nestes pensamentos quase não reparava na figura que subia o caminho. Tentou reconhecê-la, mas contra a luz do pôr-do-sol não era fácil. Percebeu que caminhava erecto, num passo regular, nem lento nem rápido, e ficou a imaginar se se lhe dirigia, ou se apenas seguia o caminho à beira do qual se erguia a casa que mandara reconstruir. Estava já suficientemente próxima para ver que se tratava de um homem de compleição sólida, que tomou decididamente a direcção da casa e se aproximou para lhe falar. Pousou no chão o saco que trazia e cumprimentou-o:
- Boa tarde senhor.
Não teria muito mais de 40 anos e vestia um fato castanho coçado, mas limpo, e umas botas de caminhada que destoavam do resto da indumentária. Na cabeça tinha um chapéu de aba curta, de tipo algarvio, que tirou respeitosamente.
- Boa tarde.
- Desculpe incomodá-lo, mas por acaso não precisa de um escravo?
José era um homem da cidade, informado, lia as notícias e não ignorava que pelo mundo fora havia povos que viviam ainda segundo costumes e tradições que ele considerava primitivas, mas não esperava que estas lhe batessem à porta no final de uma tarde de Maio.
- Não, obrigado, não preciso.
- Tem a certeza? Vejo que tem aqui uma casa bem cuidada, mas o terreno podia estar mais bem aproveitado, se não o ofende que o diga.
- Não me ofende, mas eu não vivo da terra, não preciso aproveitar melhor o terreno.
- É pena. É uma boa terra, seria produtiva. Um bom escravo trar-lhe-ia proveitos.
- Vende escravos?
- Não. Eu sou um escravo, procuro um novo amo.
- É um escravo fugido? Não procura antes a liberdade?
- Não fugi. Eu sou um escravo, sempre o fui. Sou um bom escravo e tenho orgulho nisso. O meu amo faleceu e deixou-me sem dono. Procuro um novo dono. Não quer que eu seja seu escravo?
- Não preciso de um escravo, e de resto sou contra a escravatura.
- Um bom escravo não traz inconvenientes. Não precisa pagar-me nem dar cuidados médicos, se não o entender. Serei propriedade sua, se não estiver bem cuidado o prejuízo será seu.
- Não preciso de um escravo, obrigado.
- Serei um bom escravo. Sou forte, trabalhador e sei ler e escrever. Se me deixar ser seu escravo serei obediente e esforçado. Não me queixarei se me fizer trabalhar muito. E pode açoitar-me, se for necessário. Não aconselho a que me açoite demasiado, porque prejudicará o meu trabalho, mas se achar adequado pode açoitar-me.
- Não quero açoitá-lo, nem fazê-lo trabalhar demasiado. Na verdade não quero que seja meu escravo.
- Acha que não serei um bom escravo? Asseguro-lhe que o serei. Fui um bom escravo durante muitos anos, raramente era açoitado e valia um bom preço. Apesar disso o meu amo não me vendeu, porque eu era um bom escravo. Tenho saudades do meu dono. Era um bom dono. Era justo e não me maltratava.
- O seu dono parece ter sido uma excelente pessoa, lamento que tenha falecido, mas eu sou contra a escravatura, não acho bem que ele fosse o seu dono.
- Despreza os escravos?
- Não os desprezo. Pelo contrário, valorizo-os e não concordo que sejam propriedade de alguém.
- Ser escravo é uma condição digna. Não sou nenhum malfeitor nem nenhum vadio. Trabalho duramente e sou produtivo. Valho bom dinheiro, mas se quiser comprar-me faço-lhe um bom desconto. Julgo que também seria um bom amo. Tem um ar honesto e justo.
- Não quero comprá-lo. Não quero que seja meu escravo. Não quero um escravo.
- Acha que não tenho valor? Veja bem, sou forte, trabalhador e fiel. Garanto-lhe que valho bom dinheiro. Se quiser comprar-me por 230€ fará um bom negócio.
- Não tenho 230€ e não preciso de um escravo.
- Mas eu preciso de um dono, não posso continuar a vaguear por aí sem fazer nada. Desvalorizo. Um escravo sem um amo não é um escravo, e isso é o que eu sou.
- Porque quer ser escravo? Não prefere aproveitar a liberdade e não ter dono?
O homem empertigou-se.
- Eu sou um escravo, senhor. Uma das mais antigas profissões do mundo, se bem que muito pouco considerada, hoje em dia. Há muitas pessoas como o senhor que desvalorizam a escravatura, sem ter em consideração os escravos. Ser escravo é uma situação estável. Não podem baixar-me o salário nem despedir-me, como fazem a outros funcionários, e também não podem retirar-me direitos, porque não tenho nenhuns. Além disso não vivo preocupado com a idade da reforma. Sou um bom escravo e tenho orgulho nisso.
- Concordo que terá as suas vantagens, mas acho degradante a ideia de ser propriedade de alguém.
- Ofende-me que me ache aviltante. Já lhe disse que sou um bom escravo: trabalhador, honesto e fiel. Não há nada de degradante nisso. Há muita gente que não sendo escravo não tem nenhuma dessas qualidades.
- Nisso dou-lhe razão. Há por aí muita gente que não tem essas qualidades, mas não é a si que eu acho degradante, é à noção de escravatura.
- Se me reconhece essas qualidades porque não acha que eu possa valer 230€?
- Não se trata do preço. Eu não quero um escravo.
- É um bom preço. Posso tratar da horta, caiar a casa, limpar o quintal e cozinhar para si. Por 230€ farei isso o resto da minha vida. É um bom negócio. Claro que teria de me alimentar. Não posso alimentar-me o resto da vida com 230€, mas eu como pouco. Basta que me dê carne uma vez por semana, posso comer pão e vegetais nos outros dias.
- Não o deixaria a pão e couves a semana toda, alimentá-lo-ia saudavelmente.
- Obrigado, é muito gentil. Sabia que seria um bom amo.
- Não me compreendeu. Não disse que o compraria, estava apenas a falar hipoteticamente. Não desejo comprá-lo.
- Prometeu que me alimentaria saudavelmente. É uma pessoa caridosa. Compre-me por 180€.
- Não preciso de um escravo.
- E o terreno? Aquelas oliveiras precisam ser varejadas, e o poço tem ar de precisar de ser limpo. Posso arranjar aquele barracão que vejo ali abandonado e instalar-me lá. Não o incomodarei. Trabalharei discretamente.
- De oliveiras não percebo, sou web designer, mas o poço não tem uso, não precisa ser limpo.
- Poderia sê-lo e usar a água para regar a horta que vejo ali. Produziria bem mais que aqueles míseros tomates e favas. Reconsidere: peso cerca de 87kg, por 180€ dá cerca de 2€ por quilo. É barato.
- Você deve medir à volta de 1,78m. Ficaria a mais de 100€ por metro. É bastante.
- Seja então 170€ mais o imposto de selo. Mas terá que me alimentar bem.
- Imposto de selo? Vai passar-me um recibo?
- Naturalmente. Já lhe expliquei que sou uma pessoa honesta, se é que um escravo pode ser considerado uma pessoa. Quero tudo feito legalmente. Passo recibo, pago impostos e deverá registar-me na Conservatória do Registo Automóvel. Serei legalmente seu.
- Isso parece um casamento. Porquê a Conservatória do Registo Automóvel?
- Não há uma Conservatória do Registo de Escravos, e não pode registar-me no Registo Predial. Não sou um imóvel.
- E será necessário pagar IUC anualmente e levá-lo à inspecção?
- Também não sou uma viatura. Pode levar-me ao médico de vez em quando se assim o entender, mas não fica obrigado a isso. Não teremos um contrato, será uma relação de propriedade.
- Tem um nome?
- Tive, mas caducou com a morte do meu dono. Era propriedade dele.
- Chamar-lhe-ei Sexta-Feira.
- É um bom nome. Dá-me licença que vá ver o barracão? Gostaria de o limpar para passar a noite.
- Não quero um escravo.
- Naturalmente. Até já, amo.
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