Morte súbita
Quem não foi já abordado num restaurante ou snack bar por alguém a pedir dinheiro? Geralmente são indivíduos com ar miserável, escanzelados e de tez morena, que às vezes não é possível distinguir se tem origem étnica ou apenas falta de asseio, possivelmente tatuados, eventualmente com um balde de tinta Robbialac cheio de caracóis, que tentam vender a preços atractivos. Naquele dia não foi nada assim. O fulano que se aproximou da mesa não tinha nenhuma destas características, nem rastas no cabelo nem marcas de agulhas. Vestia-se adequadamente para a estação do ano e não cheirava mal. Nem sequer fazia prever que viesse pedir dinheiro. E não pediu. Aproximou-se do cavalheiro que bebia a sua imperial enquanto degustava um pires de tremoços exageradamente salgados e cumprimentou delicadamente.
- Boa tarde. Desculpe incomodá-lo, mas o senhor tem um emprego para mim?
- Um emprego? Porque deveria eu ter um emprego para si?
- Não achei que devesse, considerei apenas que poderia ser uma possibilidade, não uma obrigação.
- Mas eu tenho cara de segurança social?
- Não tem cara disso, mas parece-me ser uma pessoa socialmente segura, que eventualmente estaria em posição de empregar alguém.
- De facto tenho três empregados, mas isso não significa que tenha que andar pela rua a empregar qualquer um.
- Como lhe disse, não acho que seja uma obrigação, apenas uma possibilidade. E a verdade é que não me enganei ao supor que o senhor era empresário. Se tem três empregados, é dono de uma empresa ou negócio próspero, podia ter necessidade de mais um colaborador, funcionário ou empregado.
- Já tenho três, e nenhum deles é grande coisa, não preciso de mais. Só me trazem é chatices.
- Se não gosta de nenhum talvez possa substituir um deles. Eu preciso de um emprego e trabalharia bem.
O homem da imperial começou a desconfiar da conversa. Levantou uma sobrancelha e perguntou:
- Trabalharia como um escravo?
- Com certeza que não. Exigiria ser pago e não prescindiria dos meus direitos de trabalhador por conta de outrem.
- Mas afinal o que é o que senhor sabe fazer? Quais são as suas habilitações?
- Eu sou desfibrilhador.
- Ladrilhador?
- Desfibrilhador. Desfibrilho.
- Desfibrilha? Que é isso? Que faz um desfibrilhador?
- Bem, naturalmente, um desfibrilhador é alguém que está no ramo da desfibrilhação. Pode ter um estabelecimento, uma desfibrilharia, ou trabalhar ao domicílio. Digamos que o senhor tem em casa um gato, ou uma panela de pressão que estão a fibrilhar. Eu vou ao seu domicílio e desfibrilho.
- Não tenho gatos, e a minha panela de pressão nunca fez tal coisa.
- Eram apenas exemplos. Podia tratar-se de um secador de cabelo ou de um blusão de cabedal. As orquídeas da sua esposa nunca fibrilharam? Ou a sua televisão?
- A televisão às vezes faz uns ruídos estranhos, talvez esteja a fibrilhar, mas nunca foi necessário chamar alguém.
- Pois talvez devesse chamar. Um dia poderá ser tarde demais. Ou então pode levá-la a uma desfibrilharia.
- Nunca ouvi falar de tal coisa. Nem de tal profissão, ou avaria.
- De facto não há por aí muitas, daí que a oportunidade de contratar um desfibrilhador seja algo a considerar. Poderia abrir uma desfibrilharia, ou uma oficina de desfibrilhação. Se quiser optar um nicho de mercado mais high end pode ser uma boutique de desfibrilhação. É chique.
- Parece dispendioso e complicado.
- Bem, há a considerar a licença de desfibrilhação ou o alvará de desfibrilhagem, mas eu sou um desfibrilhador qualificado, tenho o curso de desfibrilhação nível dois, pela Universidade de Gefate, e uma pós graduação em desfibrilhação rotomódica, com equivalência ao Advanced Defibrillation Certificate. Não haverá dificuldade em legalizar o negócio.
- Talvez, mas eu tenho um escritório de design de exteriores, não quero dedicar-me a esse assunto. Além disso não quero falar mais nisso. Deixe-me acabar em paz a minha imperial.
- Não quero impor a minha presença, mas a verdade é que seria um negócio mutuamente proveitoso.
O homem comeu mais um tremoço salgado, deu mais um golo na imperial e levou a mão ao peito.
- Não estou interessado. E não estou a sentir-me bem.
Tentou levantar-se, mas acabou por deixar-se cair sobre a cadeira de plástico da esplanada, a qual cedeu sob o peso, deixando-o estatelar-se no chão. Dois empregados acorreram, um esbaforido, o outro pressuroso.
- Senhor Figueiras, que se passa? - perguntou o pressuroso.
- É um ataque cardíaco! - exclamou o esbaforido. Dirigiu-se ao homem que tinha iniciado a conversa:
- O senhor sabe fazer ressuscitação cardio-pulmonar?
- Lamento, mas disso não percebo nada.
E afastou-se, enquanto o senhor Figueiras dava os últimos suspiros.
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