O Homem Invisível

   
    Os Bettencourt eram uma família com pergaminhos. Longe vinha já a ascendência açoriana, igual a tantos outros Bettencourts, nacionais, insulares e ultramarinos, porque este ramo da família estava já diferenciado. Era praticamente uma nova árvore. Os casamentos cuidados tinham-se encarregado de os distinguir, e eram agora os De Bettencourt.
    Ora habitavam os De Bettencourt numa moradia invejável, mas não faustosa, nem mansão, nem solar, nem palacete, na zona alta de Alcabideche, que não era bem Cascais, nem era bem Estoril. A moradia era invejável pelos padrões de Alcabideche e Alcoitão, mas aquém do diferenciado de Cascais, Estoril e Sintra, e como os De Bettencourt não eram outra coisa senão diferenciados, compensavam este facto com uma família numerosa que se tratava mutuamente na terceira pessoa, e tinha nomes diferenciados. O Sr De Bettencourt era Alberto, o que noutra pessoa qualquer seria vulgar, mas nos De Bettencourt tinha conotações monegascas, nada menos, que a Sra De Bettencourt, não o admitia. Esta Sra De Bettencourt tinha sido, felizmente, contemplada com nome mais condizente com o seu estatuto da zona alta de Alcabideche. Guilhermina, de sua graça, regozijava-se na sonoridade das albardas: Guilhermina Filipa Souza (com z) de Bettencourt. Partilhavam a moradia com a prole, em número de cinco, que preenchia o número de quartos, os quais pecavam por defeito, já que as duas mais novas tinham que partilhar o alojamento. Os mais velhos eram rapazes, Gonçalo e Nuno e eram já crescidos, jogavam ténis e o Gonçalo tinha um hobby adequado: praticava polo aquático. As meninas eram a Tita, a Nocas e a Tatão. Ninguém sabia ao certo se estes eram os seus nomes próprios, ou apenas diminutivos, nem isso importava, desde que a Sra De Bettencourt pudesse dizer em voz audível numa esplanada do Tamariz:
    - Ó Nocas, seja uma querida e vá buscar-me uma laranjada, sim?
   Eram então sete, os De Bettencourt, e viviam invejável, mas não faustosamente na zona alta de Alcabideche, na sua moradia um pouco curta de quartos e com número apenas suficiente de salas de banho. No corropio matinal de higienes e desjejuns cruzavam-se algo aleatoriamente pelo corredor do piso superior, pela cozinha e sala de refeições do piso inferior, e até pela escadaria comunicante. Escadaria era a designação que lhe fora atribuída pela Sra. De Bettencourt, porque na realidade não passava de umas vulgares escadas, como seria de esperar numa moradia que não era mansão, solar ou palacete. Nessas ocasiões cruzavam-se também com um senhor que ora fazia a barba, ora tomava um sumo de laranja, ora envergava um roupão de flanela, e que ninguém conhecia de lado nenhum. Os De Bettencourt mais jovens sempre o haviam visto cirandando pelo corredor, servindo-se de uma torrada com compota de framboesa ou atiçando o lume da lareira, mas desconheciam o seu nome, a sua proveniência ou a sua função. Os De Bettencourts seniores estavam habituados a vê-lo, cumprimentavam-no polidamente mas a sua educação esmerada impedia-os de lhe fazerem perguntas embaraçosas, como quem era ele e o que fazia ali. Não tomava as refeições com eles, nem estava presente nas festas de aniversário, mas mesmo nessas ocasiões podia ser visto na cozinha evitar que o bolo se queimasse, ou a abrir a porta aos convidados.
    Os convidados e amigos conheciam-no também, e embora não soubessem o seu nome, cuidavam que fosse um criado, empregado ou funcionário ao serviço dos De Bettencourts, mas estes não tinham cozinheira, mordomo, chauffeur ou jardineiro. E na verdade o senhor com quem se cruzavam não era nenhuma destas coisas, não exercia nenhuma destas funções e não era remunerado. Tampouco  ocupava quarto, que estavam todos sobejamente atribuídos, mas de manhã lá andava ele de roupão, a todos cumprimentando com um solene "bom dia", pedindo licença ao cruzar-se na escada e à noite desejando uma noite tranquila quando se retiravam para dormir e ele ficava a ler o jornal e a tirar fumaças do seu cachimbo. Não era um misterioso estranho, era um desconhecido familiar e ninguém fazia ideia de quem ele era.
    O Sr. De Bettencourt não pensava nele. Não bebia do seu cognac, não fumava as suas cigarrilhas, não usava a sua espuma de barbear, e a sua presença era-lhe pouco menos que indiferente: era despercebida. A Sra. De Bettencourt tolerava-o aristocraticamente, e uma vez que não fora formalmente apresentada, não lhe dirigiria mais palavras do aquelas a que a sua educação cuidada expressamente a obrigava, e embora tivesse alguma curiosidade em saber como chegara ele ali, e, sobretudo, qual era o seu apelido e quem fora a senhora sua mãe, jamais se atreveria a perguntar-lho. Aceitava senhorialmente quando ele lhe abria a porta para entrar, apreciava quando ele podava as rosas do jardim, e regozijava-se interiormente quando a De Bettencourt mais pequena, a Tita, chorava de noite com a fralda suja, e ela se dirigia ao quarto da bebé e encontrava já o senhor a aconchegar a pirralha, a fralda já mudada. Retirava-se discretamente, satisfeita por não precisar de ser ela a efectuar tão pouco higiénica tarefa, mas não agradecia. Já fora assim desde que nascera o Nuno, e ela nunca lhe agradecera. Apenas se regozijara interiormente.
    Não sabiam se ele alguma vez saía de casa. Não seriam capazes de o reconhecer, se o encontrassem nalgum lugar em que ele não vestisse o roupão. Teria estatura média, a não ser que andasse corcovado, e cabelo de cor indefinida, talvez grisalho, talvez ruço, certamente ralo. Não era jovem, mas não era velho. Talvez fosse de meia idade, mas parecia mais novo, não fora o andar corcovado que o fazia parecer mais velho. Usava óculos para ver televisão, mas como nunca a via, ninguém sabia como eram os óculos. Também nenhum dos sete saberia dizer a cor dos seus olhos, pois embora não andasse cabisbaixo, também não os olhava nos olhos.
    Um dia não o encontraram na sala de banho do piso de cima, e não o viram a fazer torradas na cozinha. Também não se cruzaram com ele na escadaria, mas nenhum dos De Bettencourt fez qualquer comentário. Foi por acaso que deram com ele sentado no cadeirão, com o jornal no colo, e pela imobilidade e pela cabeça descaída perceberam que tinha falecido.
    Ninguém se aproximou para confirmar, nem fizeram qualquer diligência a esse respeito, porque afinal, não tinha sido apresentado a qualquer deles. Ali ficou, e quando começou a deitar cheiro, fecharam a porta da sala.

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