Sherlock Holmes

- Quero reportar uma ocorrência.
O guarda sentado atrás da secretária metálica observou rápida mas metodicamente o queixoso. Viu um homem que não teria ainda 40 anos, bem vestido e aprumado. Não aparentava ter sido sujeito a violência física, ou sequer psicológica.
- Espere um momento que o nosso cabo vai já tomar nota. - Depois virou-se para trás e gritou para a sala dos fundos:
- Ó Silva, venha cá tomar nota de uma ocorrência.
O Silva apareceu, pouco agradado por ter sido interrompido na degustação da sua sandes de presunto.
- Sente-se aí nessa cadeira. - ordenou com a arrogância de quem se acha em posição de finalmente poder dar ordens a alguém, e sem se dar ao trabalho de cumprimentar, perguntou: - Então de que se queixa?
- Eu não me queixo de nada, não estou doente. - respondeu o homem sem o mínimo sinal de se sentir intimidado quer pela pose ameaçadora, quer pela falta de educação. - Quero apenas reportar uma ocorrência.
O polícia suspirou para dentro, sentou-se e enquanto começava a introduzir dados no computador com o Windows 95 perguntou:
- O seu nome?
O homem deu-lho, seguido da morada, nacionalidade, profissão, estado civil, número fiscal e data de renovação da carta de condução.
- Então relate a ocorrência.
- Bem, eu ia a passear o cão na Calçada de S. Benedito...
- De que raça é o cão? - interrompeu o guarda.
- É um pastor alemão, mas não vejo que relevância isso tem para o caso.
- Pastor alemão ou lobo da alsácia?
- Acho que é um pastor alemão, mas não tem pedigree, pode ser arraçado. Isso faz diferença?
- O relatório tem que ser explícito, pode vir a ser relevante.
- Então digamos que é um pastor alemão. Quer saber o nome dele?
- Isso não será necessário.
- Bom, contava eu que que ia descer a  Calçada de S. Benedito com o meu pastor alemão, quando ao passar em frente daquele beco que há sensivelmente a meio...
- É um beco ou uma viela?
- Não sei, nunca lá entrei. Passo somente na calçada não costumo entrar em todas as ruas.
- Se calhar é uma viela. Ou será uma travessa?
- Seja então uma viela. Ia a passar frente à viela com o meu pastor alemão quando ouvi, vindo de lá, um grito arrepiante.
- Tem a certeza que o grito era arrepiante? Não seria antes um grito lancinante?
- Isso é significativo?
- Pode vir a ser. Pense bem, o grito era arrepiante ou lancinante?
- Pareceu-me arrepiante. Talvez tivesse uns laivos de lancinância. Olhe, digamos que era um grito excruciante.
- Isso não pode ser. O senhor está a querer deturpar o depoimento? Disse que o grito era lancinante ou arrepiante, não falou em excruciante.
- Então seja lancinante.
- ... um... grito... lancinante. - anotou o guarda no seu teclado bolorento. - E que mais?
- Bem, o grito ecoou pela calçada abaixo...
- Ecoou ou reverberou?
- Acho que ecoou. Não me parece que tenha reverberado.
- Tem a certeza? Procure recordar-se com exactidão, pode ser relevante.
- O senhor guarda pode ajudar-me a esclarecer a diferença entre ecoar e reverberar?
 - Então o senhor está a querer enganar a autoridade? Primeiro diz-me que o grito ecoou, e agora quer fazer-me acreditar que não sabe o que é ecoar?
- Eu acho que ecoou, o senhor agente é que falou em reverberar, e eu fiquei na dúvida.
- Então seja exacto, preciso. O grito ecoou ou reverberou?
- Sei lá, fez barulho pela calçada abaixo, o cão até ficou com o pelo eriçado.
- Ah, então o grito foi arrepiante, não lancinante. O cidadão está a brincar com a autoridade, ao exigir uma investigação e depois não colaborar, dando informações inexactas?
- Não estou a fazer nada disso, só quero dar conhecimento de algo que se passou que achei importante, mas o senhor agente está a complicar tanto o assunto que já estou arrependido de ter vindo.
- Sou guarda, não sou agente. Está escrito na porta: Guarda Nacional Republicana, não diz Agência Nacional Republicana. Seja rigoroso nas suas declarações, por favor.
- Está bem. Eu ia a descer a Calçada de S. Benedito com o meu cão pastor alemão, quando ouvi um grito arrepiante vindo de uma viela. O cão ficou arrepiado e começou a ladrar.
- A ladrar ou a latir?
- A LADRAR! É um pastor alemão, não é um lulu da pomerânia!
- Muito bem, seja rigoroso. A... ladrar. E depois?
- Depois saiu da viela um indivíduo ensanguentado.
- Ensanguentado ou sanguinolento?
- COBERTO DE SANGUE!
- E a seguir, o que sucedeu?
- Bem o indivíduo cambaleou pela calçada abaixo...
- Cambaleou ou vacilou? Pense bem, pode ser relevante.
- Estou convicto de que cambaleou. Sim, cambaleou pela calçada abaixo e acabou por desfalecer uns metros mais adiante.
- Desfalecer? Tem a certeza que desfaleceu? Não terá antes falecido?
- Não, não faleceu. Ele ainda estrebuchava e gemia.
- Mas apesar disso não teria antes falecido?
- Pois se acabei de lhe dizer que o homem estrebuchava e gemia, é porque não tinha falecido. Ele desfaleceu, não faleceu.
- Ah, nesse caso não podemos fazer nada, não temos motivo para uma intervenção policial. Nem sequer há motivo para registar uma ocorrência.
- Não há ocorrência? Então temos uma pessoa a esvair-se em sangue na via pública, possivelmente uma tentativa de assassínio, e não há ocorrência?
- Disse tentativa de assassínio?
- Sim, o homem está quase morto.
- E tem a certeza que se trata de uma tentativa de assassínio? Não será uma tentativa de assassinato?
- Assassínio, assassinato, homicídio... Seja o que for está alguém muito ferido.
- Se houvesse um cadáver, teríamos algo de concreto, mas um desfalecido não é ocorrência, é alguém que já não está falecido. Não há nada a relatar.
- Então se eu estou aqui há este tempo todo a tentar dizer-lhe o que se passou...
- Precisamente. A tentar. O senhor não afirmou nada peremptoriamente. Tudo isto não passam de boatos, de "diz que disse". Não posso dar seguimento a um depoimento com tantas dúvidas, incertezas e inconsistências. Passe bem.

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