Um Poço de Virtudes

    Havia no distrito de Viseu, não em Trás-os-Montes, porque atrás ainda havia muitos montes, mas no meio dos montes, bem escondida no meio da serra, com acessos pouco acessíveis, uma aldeia onde quase ninguém ia. Era uma aldeia pacata, cujos habitantes viviam tranquilamente, sem sobressaltos, e cujo único pecado era invejarem secretamente a aldeia seguinte, mais isolada ainda, com acessos ainda piores, sem água canalizada, electricidade ou serviços postais. Tão recôndita era esta aldeia que nem nome tinha e ninguém lá ia.
    Era também pacata, esta aldeia. Não contava mais do que um punhado de almas, etariamente bem distribuídas e eticamente irrepreensíveis. Para esta irrepreensibilidade contribuía não apenas a pacatez dos aldeões, como também a omnipresente vigilância do pároco da aldeia, embora não fosse uma paróquia. Chamavam-lhe Padre Umbelino, porque Umbelino era o seu nome e se dava ares de padre. Não vivia na igreja porque não havia igreja numa terra tão pequena. Cuidava de uma ermida sobranceira à estrema norte, onde se instalara e a qual recuperara de forma a poder aí habitar. Atrás dela cultivara uma horta onde fazia crescer o seu sustento, e montara um pequeno redil onde mantinha dois anhos, bem como um par de galinhas chocas e alguns coelhos. À frente, limpara o adro, e instalara lá uma mesa de madeira maciça e um banco mais maciço ainda, porque o Padre Umbelino era também maciço. Grande e pesado, usava o cabelo curto, à escovinha e óculos de aros de tartaruga que punha quando queria impressionar alguém, pois que via perfeitamente sem eles. Sentado à sua mesa perscrutava dessa posição altaneira as ruas da aldeia, vigiando com olho de falcão o seu rebanho, cuidando que não houvesse infracção ou pecado, em terra onde não havia polícia ou outra autoridade que não a do Senhor. E a autoridade do Senhor tomara ele a seu cargo implementar naquela terra esquecida pela dos homens.
    Na realidade pouco trabalho tinha o Padre Umbelino para manter a virtuosidade do povoado: a aldeia era tão pobre, que não havia o que roubar; a terra era mesmo tão pobre, que nem havia com o que tentar a gula; as mulheres eram tão feias que não havia adultério; as pessoas tão iguais na sua consanguinidade que nada tinham que invejar umas às outras. Tudo isto o Padre Umbelino fingia ignorar, para que pudesse reivindicar a responsabilidade pela pureza daquelas almas. A verdade é que o seu rebanho o temia, mais do que o respeitava, e motivos para isso talvez os houvesse. Ninguém tinha a certeza, mas quando alguém sequer pensava em desviar-se do caminho da virtude, algo lhe acontecia. Talvez fosse do seu ponto de vigia que o Padre dava conta desses desvios, ou talvez a confissão dos paroquianos (embora não fosse uma paróquia) lhe desse as informações com as quais exercia a sua vigilância. O certo é que um dia a Tia Miquelina se esqueceu de partilhar com a sua comadre o sangue do galo que matara para a cabidela, e depois disso nunca mais deixara de coxear; a verdade é que o Albino carpinteiro cobrara demasiado pela mesa que fizera para a taberna do Adérito, e depois disso nunca mais fora visto; contava-se que a viúva do Zé das cabras tivera um dia pensamentos impuros, e aparecera pouco depois caída numa ravina.
    O Padre Umbelino não podia, evidentemente, ser responsabilizado por nada disto, mas nunca aparentara surpresa face a qualquer destes acontecimentos, nem demonstrara pesar pelo destino das vítimas, e isso era o suficiente para que a congregação lhe atribuísse em segredo a origem do sucedido. Em segredo, e com temor, pois bem se sabia que não se podia guardar segredos do Padre Umbelino. Na confissão mencionavam-se os pecadilhos mais insignificantes para que o Padre não acusasse os confidentes de mentir. Tão sossegada era a aldeia que a maioria inventava pecados para ter algo que dizer em tão solene ocasião, e o Padre, que tudo via, que tudo ouvia e que tudo sabia, sabia que os pecados eram falsos e distribuía pouco penosas penitências, e assim todos andavam satisfeitos.
    Um dia apareceu na aldeia um forasteiro.
    Ao início, todos se recolheram às habitações por medo ou vergonha, e foi o Padre Umbelino quem desceu da sua ermida e foi enfrentar o desconhecido. Veio a saber-se que era um angariador da Cabovisão. Ninguém tinha ainda ouvido falar da Cabovisão, e palavras como "telejornal", "TVI" ou "Goucha" eram não apenas desconhecidas, mas até impronunciáveis. Porque na aldeia não havia electricidade, o angariador não foi capaz de vender nada, mas deixou, à guisa de incentivo, uns exemplares da TV Guia, que o Padre Umbelino se apressou a confiscar. Todavia, nem o censor mais acérrimo é infalível, e um dos exemplares foi parar às mãos da Tia Clotilde, que em breve e em segredo o mostrou às comadres, e estas aos respectivos cônjuges e prole.
    A partir daqui foi o caos! A visão daquelas poucas páginas impressas a cores transformou as mentalidades e abriu novos horizontes ao povo do povoado.
    No dia seguinte o filho mais novo do Manel Cachucho disse "bué".
    Na quinta-feira a Ermelinda foi buscar água à bica com o lábio inferior pintado.
    Na semana seguinte o Albino carpinteiro pôs um piercing no mamilo.
    O Padre Umbelino andava desesperado com o rumo dos acontecimentos, não aguentava tantos pecados. As penitências não eram já leves penas, como as das avezinhas: o filho mais novo do Manel Cachucho foi enviado para longe, para um seminário; a Ermelinda teve um "acidente", partiu os dentes todos, ficou com ambos os lábios tão negros e inchados que nem se percebia de que cor eram; do Albino carpinteiro nunca mais ninguém deu notícia, ficaram as portadas da taberna por fazer.
Nada disto fez abrandar a marcha do progresso. Havia já opiniões políticas, tatuagens e treinadores de bancada. Todos eles iam desaparecendo, por um motivo ou outro, e a taberna do Adérito já quase não tinha clientes. Chegou mesmo o dia em que o próprio Adérito serviu um hamburger. Na manhã seguinte foram dar com ele afogado na talha do vinho branco.
    O povoado ia-se despovoando, mas o que nunca desaparecia era a figura do Padre alcandorado no adro da sua ermida, com o olhar de falcão cada vez mais obstruído por um sobrolho dia a dia mais carregado.
    Um dia o Padre Umbelino saiu de manhã com a taça de vinho e a bucha de queijo, sentou-se á sua mesa maciça e esperou que os paroquianos fossem aos seus afazeres. Estes tardavam e foi só pela hora do almoço que o Padre se apercebeu que já não sobrava nenhum. Sobrava apenas a sua aldeia virtuosa.

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