Análise de texto

    Sérgio Castro é talvez dos poetas portugueses mais incompreendidos e menosprezados. Não apenas a sua poesia se reveste de profundo significado, repleta de referências e intencionalidade, como é ainda um visionário que antecipou em muitos anos o famoso Acordo Ortográfico. Disso é exemplo o seu poema datado de 1980 e que transcrevo:

A cançom quiu abô minsinoue  

       
Às dez em ponto é a entrada
mas eu só lá tou à uma
até à duas num faço nada
até às três coisa ninhuma

A cançom quiu abô minsinoue

Às quatro horas entra o chefe
e logo me bou sentare
às cinco
beinhomimbora
ai farto de trabalhare

E ninguem
fàzumeideia
de como eu trabailho na meia


    Atente-se no título A canção que o avô me ensinou e na forma profética como, em 1979, o autor antecipava a ortografia que viria a vigorar no milénio seguinte. A forma como procede à agregação de palavras, de maneira a evitar grafemas desnecessários que venham a confundir o leitor é verdadeiramente revolucionária.
    Revolucionário é também o tema do poema. Trata-se de um poema de intervenção, um grito de revolta de um povo oprimido, um chamamento à luta, à revolução.
    O título situa-nos num plano superior, mítico. O "abô" a que se refere, não se trata apenas de um velhote. Este "abô" deve ser aqui entendido no sentido de ancião, um sábio, um xamane, um guru. A "cançom" de que nos fala não é uma música, é uma saga, uma história primeva, como as dos índios norte americanos ou dos esquimós que contam história da origem do mundo. E esta "cançom" será ela também repetida. Foi ensinada para que possa ser passada a outras gerações.
    Começa com o status quo. A entrada às dez em ponto. Não às 9:55, nem às 10:02. O relógio é opressivo e significa a inevitabilidade e o rigor, a coerção das liberdades. Isto é declaradamente inadmissível e exige uma tomada de posição: só lá estou à uma. São os direitos do cidadão a prevalecer, a individualidade a sobrepor-se ao regime. Em seguida vem a labuta, a exploração, subtilmente expressa no uso da dupla negativa: se não faz nada, é porque faz algo, talvez faça tudo. É um mouro de trabalho, uma besta de carga, um escravo. Mas piora: até às três, faz "coisa nenhuma". Fazer coisa ninhuma é trabalho árduo, cansativo, como evidencia a expressão "fazer coisa", oriunda dos tempos da escravatura, das roças de São Tomé, das fazendas angolanas ou das plantações de algodão ou cana-de-açúcar. "Fazer coisa" era sinónimo de trabalho inútil e incompreensível, era a ocupação pura e simples, uma expressão que viria a evoluir para o actual "encher chouriços".
     Depois a explicação: "a cançom que o abô minsinoue" é a declaração de que o situação transita de gerações anteriores. Já o "abô" assim vivia sob o jugo do opressor.
    O verso seguinte personifica esse opressor: "o chefe". "O chefe" é o patrão, o capitalista, o imperialista que explora, um Belzebu que se compraz com a miséria dos subordinados, que prospera com o seu suor. Mas é também outra coisa: é o Boss, o Bruce Springsteen que sempre cantou as agruras do povo, do trabalhador, do cidadão anónimo. E é esta dualidade de chefe-opressor / boss-libertador que nos leva ao ponto de viragem.
    Aqui se dá o clímax: quando a situação atinge um paroxismo de negrume, afinal o chefe aparece como figura salvadora, redentora: "logo me bou sentare". É só aquando da chegada desta figura, aparentemente demoníaca, que o coitado se pode sentar. Só agora pode descansar um pouco de "fazer coisa". E em seguida "beinhomimbora". Uma vez mais o tão aclamado Acordo Ortográfico a ser antecipado. Mais do que isso, se Saramago eliminou a pontuação, Sérgio Castro vai mais longe e elimina hífenes e espaços, tornando a leitura ainda mais clara. Mas mais do que vir embora, o que já é bom, a positividade expressa-se no verso seguinte: está farto de trabalhar. Está aqui claramente indiciada a ideia de prosperidade, expressa pelo adjectivo de fartura, sinónimo de abundância. Há fartura de trabalho, logo de emprego, logo vive-se um tempo de vacas gordas, e isso é graças ao chefe, que permite que o funcionário se sente.
     Por fim a conclusão. "Ninguem fàzumeideia" o que fecha o círculo e nos remete para o hermetismo do poema, não acessível a todos e expresso logo no início: esta informação não está disponível para o comum dos cidadãos. É o "abô", o ancião, o xamane, o guru quem detém a informação e a passa apenas a alguns, poucos, escolhidos. Dos restantes, "ninguem fàzumeideia".
     O último verso é, evidentemente, um caso de intertextualidade, que nos remete para outro poema do mesmo autor. Se aqui "eu trabailho na meia", em outro poema do autor "eu trabalho lá no Lima 5".
Mas isso é material para outra análise



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