O Snack Bar da Alice, Parte 2

    Foi só depois do último caracol comido, depois do último pedaço de pão embebido na última gota de molho e da última pinga de imperial escorrupichada do fundo do copo que o Estimado Ouvinte e o Caro Telespectador se retiraram para as suas respectivas casas para finalmente beneficiarem de um longo e merecido repouso, após um dia tão cheio de peripécias e aventuras, e se o repouso foi merecido, talvez não tivesse sido tão longo quanto seria necessário, pois no dia seguinte, bem cedo, tiveram que se apresentar ao Justo Vencedor na Domus Iustitiae, onde se fazia jus ao nome quer do edifício, quer do inquilino, pois aí se administrava a mais pura e invisual justiça, devidamente equilibrada nos mesmos pratos onde na véspera se haviam pesado os meios quilos de caracóis.

    Cumprimentaram-se não efusiva, mas cordialmente, frente ao edifício e subiram juntos os degraus no cimo dos quais se encontrava o Meirinho, pois era pequenino e picuinhas, e ao qual deram prontamente os seus nomes, em troco dos quais receberam um olhar reprovador e a indicação de que se deveriam sentar num longo e desconfortável banco onde já estava instalada uma corja de facínoras, pançudos e engravatados, acusados dos mais hediondos crimes: branqueamento de capitais; desvio de fundos; corrupção passiva; peculato; favorecimento ilícito; corrupção activa; gestão danosa!

    O Caro Telespectador e o Estimado Ouvinte entreolharam-se e algo receosos foram lentamente sentar-se no banco, evitando olhar directamente os meliantes, mas sendo inquisitoriamente fitados por estes. Não estavam sentados há cinco minutos, quando o maior facínora de todos, o mais engravatado, o mais pançudo, com os óculos mais grossos e a careca mais penteada, o gestor mais danado de todos eles, se levantou e veio postar-se de pé em frente deles.

    - Porque é que vocês estão aqui? – perguntou num tom de ameaça velada.
    - Bem, - respondeu o Estimado Ouvinte - nós deitámos as garrafas fora do vidrão.
   E todos eles se afastaram com repulsa, para o canto mais longínquo do banco onde murmuraram entre eles comentários certamente pouco abonatórios, até que o Caro Telespectador acrescentou:
   - Mas a garrafas tinham depósito.

   E então todos suspiraram de alívio e se aproximaram e deram-lhes palmadinhas nas costas, e passaram as horas seguintes, enquanto esperavam pela audiência, a falar de branqueamento de capitais e corrupções activa e passiva e todo o tipo de cenas fixes, até que o Meirinho se aproximou e chamou os seus nomes, e eles se levantaram e o seguiram enquanto os outros prevaricadores lhes enviavam palavras de encorajamento e levantavam os polegares.


    O Meirinho introduziu-os na sala onde se encontrava a Justo Vencedor, e foi sem grande surpresa que verificaram que já lá estava sentado a uma mesa o Feliz Contemplado, rodeado de garrafas de cerveja vazias e tendo à sua frente 43 fotografias de 13 megapixeis emolduradas em molduras de contraplacado marítimo e com círculos e anotações a marcador vermelho, explicando o que cada uma era e o que significava. Havia fotografias do ângulo sudoeste, e do ângulo oeste, fotografias panorâmicas e macros, com filtros ultravioleta e a preto e branco, com câmaras térmicas e fotografia aérea, e todas elas tinham por tema uma pilha de garrafas de super-bock aleatoriamente dispostas num monte situado no fundo de um barranco, e por trás de todas estas fotografias e garrafas encontrava-se orgulhosamente sentado o Feliz Contemplado, felicíssimo por ter sido contemplado com a oportunidade de provar o seu grau de cidadania, expondo a falta de cidadania de outrem. O Caro Telespectador e o Estimado Ouvinte cumprimentaram-no delicadamente, pouco preocupados com a sua presença ali e nada intrigados com as garrafas de super-bock cuidadosamente etiquetadas ou com as 43 fotografias emolduradas em contraplacado marítimo, e da mesma forma despreocupada cumprimentaram o Justo Vencedor e perguntaram-lhe se depois da sessão não queria ir comer uma caracolada, uma vez que conheciam um lugar onde faziam uns caracóis como não havia outros, guisadinhos, com os corninhos de fora a puxar ao sal e à imperial fresquinha. O Justo Vencedor olhou-os severamente e disse que estava bem, mas primeiro tinham que dizer se reconheciam aquelas garrafas de super-bock. O Estimado Ouvinte esclareceu que conhecia muitas garrafas de super-bock e tinha tido até o prazer de experimentar algumas, mas não podia afirmar com certeza absoluta que alguma das suas conhecidas ou experimentadas se encontrasse no grupo das que o Feliz Contemplado ali apresentava, uma vez que uma garrafa de super-bock vazia era igual a outra garrafa de super-bock vazia e ele não era capaz de jurar que reconhecia alguma daquelas, assim como não podia afirmar que não as reconhecia. O Justo Vencedor pediu-lhes então que examinassem cuidadosamente as 43 fotografias de 13 megapixeis emolduradas em contraplacado marítimo com círculos e anotações a marcador vermelho, o que ambos fizeram conscienciosamente até que o Feliz Contemplado e o Justo Vencedor e até o pequenino Meirinho se cansaram de esperar e lhes perguntaram o que tinham a dizer acerca daquilo, ao que ambos foram unânimes em considerar que a qualidade das fotos era muito boa, que os filtros de ultra violeta e térmicos estavam muito bem aplicados, que o enquadramento estava muito bem conseguido e que até os círculos estavam perfeitamente desenhados e as anotações não tinham erros de ortografia e tinham uma caligrafia muito agradável e legível, além de que o contraplacado marítimo tinha sido uma boa escolha para as molduras. Nesta altura o Feliz Contemplado interrompeu e questionou se reconheciam o tema, se sabiam onde aquelas fotos tinham sido tiradas e quem despejara aquelas garrafas pelo barranco abaixo, o que motivou o Caro Telespectador a contar a história de como tinham ido à garagem do Prezado Leitor comer uma caracolada como não havia outra, e como tinham posto as grades de cerveja na traseira da Renault 4L amarela e como tinham encontrado um vidrão fechado para balanço, e nessa altura o Justo Vencedor interrompeu enfastiado e perguntou se naquelas fotografias estavam as garrafas que tinham levado da casa do Prezado Leitor. Isto motivou o Estimado Ouvinte a explicar pacientemente que uma garrafa de super-bock vazia era igual a outra garrafa de super-bock vazia, e que uma pilha de garrafas de cerveja vazias no fundo de um barranco era igual a outra pilha de garrafas de cerveja vazias no fundo de um barranco e não podia jurar que aquela era a sua pilha, mas também não seria capaz de afirmar que não o era, a não ser que nalguma das 43 fotografias de 13 megapixeis emolduradas a contraplacado marítimo estivesse uma imagem da raspadinha de contrafacção que eles tinham posto debaixo da pilha de garrafas que tinham encontrado e da qual o Feliz Contemplado se apropriara. 

    A referência à raspadinha de contrafacção fez soerguer o sobrolho do Justo Vencedor e rodar o foco da sua atenção para o Feliz Contemplado, inquirindo se algum dos 559 megapixeis distribuídos pelas 43 fotografias evidenciava a presença de uma raspadinha contrafeita, raspada ou não, o que obrigou o Feliz Contemplado a aturada contemplação dos conteúdos das 43 molduras de contraplacado marítimo até admitir, contrafeito, que de facto nenhum dos 599000000 pixeis continha tal evidência, mas que apesar disso ele podia testemunhar a presença de tal objecto no local onde as fotografias, macro, térmica e aérea, haviam sido tiradas, o que suscitou no Justo Vencedor a curiosidade de saber onde estava a tal raspadinha que poderia identificar positivamente a pilha de garrafas de super-bock vazia no fundo do barranco, face a todas as outras pilhas de super-bock vazias no fundo de outros barrancos, e perante tal inquisição foi o Feliz Contemplado forçado a admitir que tinha, como bom cidadão, entregue a raspadinha no local onde se entregam as raspadinhas, em vez de, salientou, a deitar por um barranco abaixo com uma pilha de outras raspadinhas. O Justo Vencedor pediu-lhe que fosse mais explícito quanto ao local onde se entregam as raspadinhas, e foi o Feliz Contemplado forçado a admitir que a entregara numa repartição da Casa da Sorte e tinha recebido o prémio de 3€ a que tinha direito, o que levou o Justo Vencedor, apoiado pelo Estimado Ouvinte e pelo Caro Telespectador, a acusá-lo de favorecimento ilícito, gestão danosa, desvio de fundos e corrupção passiva.
   
    O Meirinho, pequenino e picuinhas, obrigou-o a sentar-se no banco dos facínoras, o que muito o indispôs, e foi condenado a pagar uma volumosa coima no valor de uma caracolada como não havia outra.

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