O Pezudo

   Não sei porquê, hoje acordei a pensar no Caçunha. Há muito tempo que não pensava no Caçunha, e duvido até que mais alguém se lembre dele.
   O Caçunha era o típico pobre diabo. Sem família, e suponho que sem amigos, vivia na taberna e tinha por companhia uma garrafa de tinto, daquelas sem rótulo, com as 5 estrelas no gargalo, e tampa de plástico por rolha, que nunca estava bem vazia, mas andava sempre longe de estar cheia. O meu avô deu-lhe trabalhos e foi assim que se tornou no faz-tudo lá de casa. Com o tempo mudou-se para a casa da palha, que ganhou um chão de cimento, uma cama de ferro e uma bacia. Não me recordo se tinha casa de banho, mas era apesar de tudo melhor que a ruína onde pernoitava antes. Houve ocasiões em que não chegava à ruína, e a famosa expressão "ficar caído na valeta" teve várias vezes um sentido literal, a pontos de ter que ser hospitalizado, com feridas mais ou menos graves.
   Não sei se Caçunha era alcunha. Era assim que o meu pai se lhe referia. O meu avô chamava-lhe Pezudo, porque tinha o hábito de andar descalço, embora tivesse umas botas de pedreiro sempre sujas e já gastas. Chamava-se Jorge, e era assim que eu e a minha irmã o tratávamos, quando íamos de visita. Era giro ir ajudar o Jorge, com os meus 5, 6, 8 ou 10 anos. Ajudava a arrumar os sacos de farinha, ou os fardos de palha, e embora atrapalhasse mais do que ajudava, ele deixava que o atrapalhasse, e quando me cansava de "ajudar" lá tinha ele que arrumar o que a minha ajuda tinha desarrumado. Lembro-me da sua paciência quando ia ajudar a cavar batatas e cortava as batatas todas ao meio. Mas não se queixava e apreciava a companhia. Dizia a minha avó que ele gostava muito de nós, embora eu não saiba bem porquê. Era dele a primeira bicicleta grande em que aprendi a andar. Tinha uma Yé-Yé verde, roda 28, com mudanças ao cubo, e para conseguir andar eu tinha que enfiar uma perna por dentro do quadro para chegar ao outro pedal, e assim ia até ao fim da rua, todo torto e sem me conseguir sentar, para depois voltar. Ir até ao fim da rua e voltar parecia, naquela altura, ser tudo quanto era necessário fazer na bicicleta.
   O Jorge era pessoa de poucas palavras. Também não acho que conhecesse muitas, embora não fosse débil. Compreendia o que se lhe dizia, mas as respostas não costumavam ser muito mais elaboradas do que "sim" ou "não", ou alguma informação factual. Não era grande interlocutor para conversas filosóficas, mas era simpático. Falava com voz pausada, da mesma forma que se mexia. Nada de pressas para o Jorge. Andava devagar, com os seus grandes pés descalços, às 10 para as 2 e as tarefas lá apareciam feitas, quando a bebedeira não o impedia. Às vezes, quando andávamos a apanhar caracóis, para comer ou vender, ele trazia uma mão-cheia e dizia-nos onde podíamos encontrá-los. Quando me oferecia para lavar o carro, ele lá dava uma ajuda, e quando me lembrava de aparar a sebe, com aquelas grandes tesouras de podar, era ele quem acabava de varrer os restos dos cedros no meio do caminho. Se a memória não me atraiçoasse talvez tudo isto não fosse tão romanceado.
   A casa  da palha desapareceu. Foi demolida, juntamente com a casa, para passar uma estrada.
   O Caçunha morreu de doença, não me lembro qual, ou quando, mas, pensando bem, talvez não seja justo dizer que não deixou saudades.

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