Superhero
Cidade grande.
Noite escura.
Viela vazia.
Viela quase vazia, pois uma velhinha a atravessava penosamente, na esperança de conseguir chegar á sua casinha sem incidentes. Mas incidente foi o que aconteceu, quando um jovem encapuzado se aproximou e fez brilhar à luz mortiça do candeeiro da avenida distante uma navalha de ponta e mola.
- Passa para cá os comprimidos da artrose, velha.
A velhinha olhou para o jovem toxicodependente, e com a rapidez que artrose lhe permitia rebuscou na sua bolsa. Estava quase a encontrá-los quando uma voz alta e firme se fez ouvir:
- Não precisa de lhe dar nada, minha senhora.
O assaltante voltou-se rapidamente, de navalha em riste. A velhinha voltou-se com a rapidez que a artrose lhe permitia, sem ter encontrado os comprimidos. Viram uma figura parcamente iluminada pela luz mortiça do candeeiro da avenida distante, e esta figura tinha os punhos cerrados sobre as ancas e fazia esvoaçar uma capa amarelo torrado no ventilador de um ar condicionado. Na cara, uma mascarilha, e no peito, sobre a t-shirt amarelo canário justa, estava desenhado um olho que a maioria das pessoas consideraria semicerrado, mas que ele, sendo optimista, achava entreaberto. Por cima deste desenho, a amarelo ocre, um P maiúsculo em caracteres góticos. Até a velhinha compreendeu que estava perante um super-herói e aproveitou para fugir com a velocidade que a artrose lhe permitia, enquanto o assaltante brandia a sua navalha de ponta e mola, incrédulo perante a figura que se lhe afigurava, e perguntou:
- Quem és tu?
O super-herói virou-se de perfil e esclareceu:
- Eu sou... - fez uma pausa dramática - ...
O assaltante esperou, delicadamente.
- ... O PERSCRUTADOR! - acabou por revelar.
- Quem?
- O Perscrutador.
- Isso é uma pessoa ou uma coisa?
- Eu sou uma pessoa. O Perscrutador é o meu nom de guerre .
- O teu quê?
- O meu nome. Sou um super-herói, e estou aqui para te impedir de cometer acções reprováveis.
- Não és um bocado lingrinhas para super-herói?
- Estive com gripe, perdi um bocadinho de peso, mas já estou a recuperar. Além disso confio no meu superpoder, não na minha força física.
- Tens um superpoder? Isso é fixe. Qual é?
- Eu perscruto.
- Tu fazes o quê?
- Perscruto.
- Isso parece o nome de um enchido da Beira Baixa, como os maranhos.
- Não é enchido nenhum, é um superpoder, e vou utilizá-lo em ti.
- Diz lá outra vez o teu nome?
- O Perscrutador.
- Eh pá, não sou capaz de dizer isso. Diz lá isso por sílabas.
- O Pers-cru-ta-dor.
- Tens a certeza que é assim?
- Acho que sim, não fui ver. Talvez seja Per-scru-ta-dor.
- Então vais prestrudar-me?
- Perscrutar-te. Sim, vou fazer isso.
- É doloroso?
- Fisicamente não. Vou olhar-te com o meu olhar perscrutador, e vais perceber que consigo ver dentro de ti, todos os teus maus sentimentos, todas as tuas intenções reprováveis e vais ficar muito perturbado e arrependido. Vai doer-te a alma e emendar-te-ás.
- Isso parece aborrecido. É demorado?
- Não deverá ser, a não ser que sejas uma pessoa realmente vil e tenhas muitos maus sentimentos e intenções reprováveis.
- Tenho alguns. Ia assaltar uma velhinha, por exemplo. Não é uma intenção louvável.
- Ah, vês como já está a resultar? Já mostras arrependimento. Estás a sentir-te perscrutado?
- Nem por isso. Sinto mais fome, ainda não jantei.
- Prepara-te para enfrentares o... - pausa dramática... - PERSCRUTADOR!
E com estas palavras o super-herói semicerrou os olhos (ou entreabriu-os, não se sabe bem) e fitou o bandido bem dentro dos seus olhos negros de maldade. Este começou a sentir-se incomodado, por isso agarrou na sua navalha de ponta e mola, deu duas chinadas na barriga do lingrinhas e veio-se embora.
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