Libertad O Muerte



Foi quando veio o IMI para pagar que o verniz estalou. Até então os moradores da Quinta dos Sobreiros viviam um vida razoavelmente tranquila, não mais sobressaltada do que a de qualquer outro munícipe da margem sul que escolhera viver fora de Lisboa, mas quando os habitantes do condomínio aberto receberam a conta do IMI, verificaram que tinha havido um aumento significativo naquela conta, face ao ano anterior. Foi o Sr Ferreira quem reparou nisso, ao abrir a caixa do correio e encontrar o envelope da Autoridade Tributária. Começou a resmungar em voz alta, para consigo próprio, mas o vizinho, que o ouviu, juntou a sua voz aos protestos, a conversa atraíu a D. Ermelinda da casa em frente, e brevemente uma mão cheia de condóminos vituperava contra o aumento, salientando que nem havia policiamento, e a recolha do lixo por vezes ficava por fazer e os ajardinamentos municipais estavam desleixados. Os protestos subiram de tom, quando alguém mencionou o preço das portagens que davam acesso à capital, recrudesceram face à análise da factura da luz, ininteligível para além de todas as parcelas que não eram consumo de energia, e rapidamente a resmunguice do Sr. Ferreira se tornou numa manifestação de populares irados, a qual por sua vez se transformou num debate moderado pelo Dr. Castanheira, solicitador que percebia de leis, e que seria das pessoas mais indicadas para sugerir o rumo a tomar para reagir àquela extorsão. E foi desse debate, e da verificação que as diversas sugestões acerca de como evitar aqueles roubos tributários não eram exequíveis, que surgiu afinal a solução, primeiro a medo, mas que foi progressivamente ganhando forma, conforme os populares se convenciam que aquela era uma guerra que não poderiam ganhar. Ninguém soube ao certo quem primeiro fizera a proposta, mas a verdade é que pouco a pouco ela ganhou adeptos, até que se verificou a unanimidade e o debate encerrou com aplausos e uma decisão:
     O Condomínio Quinta dos Sobreiros iria declarar a independência.
     Inseguros quanto aos procedimentos a seguir, foi a D. Luísa, professora reformada do ensino primário, quem, do alto dos seus conhecimentos de História de Portugal, lembrou que deviam enviar uma carta ao Papa, pedindo uma bula que validasse a decisão acabada de tomar. Foi consenso geral que se tinha sido um procedimento adequado para D. Afonso Henriques, também o seria para eles, pelo que a D. Luísa ficou encarregada de escrever uma carta a S. Santidade, usando a sua caligrafia de professora primária e uma folha de papel azul de 25 linhas que guardava ainda na sua escrivaninha. Todos concordaram que este formato era muito mais adequado do que um impessoal e-mail redigido em Times New Roman. Nesta altura o solicitador, homem moderno e sabedor de leis, alvitrou que, pelo sim pelo não, talvez não fosse má ideia enviar também uma comunicação à Organização das Nações Unidas, explicando que se tratava de um país novo, que iriam precisar de um poste de bandeira à porta do edifício de Nova Iorque e solicitando assento no Conselho de Segurança. Todos apoiaram. Já tinham dado o assunto por encerrado quando lá do fundo o pai do Sr Agostinho, que estava de visita mas fora arrastado pelo entusiasmo da turba, sugeriu que já agora podiam mandar um SMS para a Assembleia da República, em Lisboa, dando conta da secessão, explicando que a partir daquela altura o Condomínio Quinta dos Sobreiros deixava de fazer parte de Portugal e que renunciavam aos seus deveres fiscais, bem como à nacionalidade Portuguesa. Ouviram-se murmúrios de aceitação, mas alguém observou que essa explicação iria ultrapassar o número de caracteres autorizado para cada SMS, pelo que decidiram, em vez disso, enviar uma carta (em papel A4, Times New Roman, sem negritos) a qual seria expedida via UPS, organização supranacional, ao contrário dos Correios e Telecomunicações de Portugal, nos quais ninguém já confiava.
     Foi com aplausos que se deu por encerrado o capítulo das formalidades, mas  ninguém achou necessário redigir uma Declaração de Independência, preferindo, em vez disso, pôr uma cancela à entrada da propriedade, a qual transformaria o condomínio aberto, numa fronteira internacional. Da construção da última casa tinha sobrado um WC de plástico, dos homens das obras, que foi arrastado até junto da cancela, e no qual abriram com a ajuda de um X-acto uma janela, que transformou o WC numa guarita, a qual deveria albergar um guarda que controlasse a fronteira, a alfândega e o fluxo de migrantes. Para pôr junto a esta guarita, julgou-se indispensável uma bandeira, símbolo da soberania nacional, e acabaram por aceitar a oferta do Sr. Gaspar, que, por tão nobre causa, sacrificaria a amada bandeira do Vitória de Setúbal, à qual devia ser recortada a bola e as letras, e que depois dessa operação deveria ondular altaneiramente por cima da guarita. Infelizmente, o Sr Gaspar só tinha uma bandeira, e o Dr. Castanheira lembrou que iriam precisar de uma segunda, para hastear em frente da sede da ONU. Entreolharam-se, pesarosos (excepto o Sr. Gaspar, que ficou secretamente feliz por não sacrificar a bandeira do seu Vitória) e acabaram por optar por uma bandeira do Benfica, uma vez que benfiquistas havia muitos e bandeiras não faltavam. Executaram a mesma operação, mas mantiveram a expressão "Glorioso" que lhes pareceu adequada para lema de uma nação. Depois decidiu-se o hino. Ninguém foi capaz de negar que a inexistência de uma banda filarmónica no Condomínio Quinta dos Sobreiros impedia a composição de uma marcha triunfal, o que muito os contristou, mas o facto foi obviado pela escolha de um cante alentejano, que além realçar as suas raízes e remeter para os sobreiros que davam nome à nação, não requeria instrumentos musicais. Logo ali se dispuseram a registar o Hino, que devia ser tocado do alto da guarita todos os dias ao nascer e pôr do sol, o que fizeram sem demora, cantando entusiasticamente para o gravador de cassetes do filho dos Silvas, que fez as vezes de engenheiro de som. E assim se ouviu pela primeira vez na República do Condomínio Aberto da Quinta dos Sobreiros o Hino Nacional, que mais não era do que "Eu Ouvi Um Passarinho" à qual foi retirada a letra e substituída por uns lalalas e nananas, para que não viesse a haver complicações futuras de direitos de autor e royalties, mas que apesar disso encheu o coração e a alma dos cidadãos, a ponto de trazer algumas lágrimas aos olhos dos mais sensíveis.
     Houve profundas mudanças na vida dos habitantes da nova república, a começar pela nacionalidade. Passaram a designar-se Sobreiranos e boa parte deles reformulou a sua vida. A D. Luísa saíu da reforma e tomou a seu cargo a educação dos mais novos; O Dr. Pedrosa reduziu as horas de trabalho no hospital de Palmela e transformou a sala de costura da esposa num consultório; a sogra da viúva Saraiva, que passava o tempo à janela, ganhou a designação de Chefe dos Serviços de Segurança e Vigilância. Todos se afanavam na busca de tarefas e soluções que obviassem aos problemas de uma recém implementada república, e nem os porcos da Manor Farm de Orwell poderiam estar mais orgulhosos do trabalho desenvolvido pelos seus iguais, do que os Sobreiranos estavam um dos outros. Elogiavam-se mutuamente, ajudavam-se uns aos outros e esforçavam-se por ser auto-suficientes. Instalaram painéis solares em todos os telhados e deixaram de pagar a conta da luz; abriram furos artesianos, escavaram um poço no espaço ajardinado municipal e deixaram de pagar a conta da água; compraram fogões eléctricos e deixaram de comprar botijas de gás; compraram repetidores wireless e partilharam a internet do telemóvel do Sr Gaspar. Dada a sua recém adquirida independência achavam que estavam a beneficiar dos novos preços do roaming, mas o fornecedor de internet nunca deu por nada.
     Um dia decidiram que deviam ter a sua própria moeda, mas como não dispunham de máquinas de cunhagem, optaram por usar o dinheiro do Monopólio, do qual havia um exemplar em cada casa, e como todos os jogos tinham o mesmo número de notas, acabaram assim com a desigualdade social: nem ricos nem pobres.
     Ao fim de algum tempo alguém se lembrou de perguntar se o Papa, as Nações Unidas ou a Assembleia da República tinham dado resposta às suas cartas e verificou-se que nenhum deles se tinha dignado responder, o que sobremaneira ofendeu os Sobreiranos até que o solicitador Castanheira explicou que passado um determinado prazo, requerimento que não obtivesse resposta se considerava tacitamente aceite, pelo que a República do Condomínio Aberto da Quinta dos Sobreiros era agora um país reconhecido pela ONU, pela República Portuguesa e pela Santa Sé, o que foi motivo de grande regozijo, traduzido em festarola onde se cantou abundantemente o "Ouvi um Passarinho", com letra e sem ela, e foi ali determinado que aquele dia passaria a ser feriado nacional. Decidiram também, no calor dos festejos, que precisavam urgentemente de um Comité Olímpico a fim de preparar as olimpíadas de inverno, que se aproximavam.
     Numa tarde de Outubro apareceu um fiscal da câmara. Ignorou displicentemente a fronteira e as formalidades aduaneiras e dirigiu-se aos contadores da água. A sogra da viúva Saraiva deu prontamente o alarme, e o Dr. Castanheira redigiu imediatamente um vigoroso e-mail de repúdio pela invasão, o qual enviou à ONU, solicitando o envio de um destacamento de Capacetes Azuis como força de manutenção da paz. O fiscal veio e foi, sem que tivesse sido molestado, ou sequer se tivesse apercebido que violara o Direito Internacional, e os Capacetes Azuis nunca chegaram a ser vistos.
     E debalde o Dr Castanheira insistiu na presença dos Capacetes Azuis e até da Guarda Suíça, porque quando as casas foram penhoradas por não estar pago o IMI, ninguém lhes acudiu, e hoje a República do Condomínio Aberto da Quinta dos Sobreiros não é mais do que uma utopia, uma lenda que se conta no Além Tejo, como a da Atlântida ou as Minas do Rei Salomão.

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