O Insurrecto
Era um girassol, entre muitos outros girassóis. Era um campo de girassóis, a perder de vista com milhares de cabeças levantadas a olhar o céu, alinhados e espevitados como soldados na parada. Mas no meio de todos esses girassóis, havia um que era diferente. Os outros girassóis chamavam-lhe "O Insurrecto", porque ao contrário deles não seguia religiosamente o Sol. Enquanto os demais, os surrectos, acordavam virados para Leste, almoçavam virados para Sul e adormeciam virados para Poente, o Insurrecto olhava para outros sítios. Olhava para baixo e sabia o que se passava no solo. Conhecia as minhocas e os ratos e as cobras; olhava a estrada que limitava o campo e conhecia os carros e camiões e imaginava a que lugares se dirigiam. Este, era um girassol que vira o Norte, que sentira na cara o vento fresco, que via as sombras quando os outros só viam a luz. E enquanto todos os outros girassóis baixavam a cara e adormeciam quando o sol se punha, este era o girassol que vira a Lua. E contava aos outros acerca da Lua e dos carros e dos ratos, e de como todos corriam e fugiam e se escondiam, mas nenhum dos outros girassóis queria saber disso, e embora não o contrariassem, também não lhe ligavam, e mal tomavam conhecimento de que havia uma Lua ou uma estrada ou uma cobra. E sem ligar ao seu destino fadado de futuro óleo alimentar ou comida de periquito, um dia o Insurrecto levantou-se e foi embora.
Mal tinha andado duas fileiras de girassóis, sentou-se e descansou um pouco, porque os girassóis andam devagar e cansam-se depressa, e além disso aquele estava cansado e com sono, porque em vez de dormir como todos os outros girassóis, tinha ficado acordado até tarde a ver a Lua e as estrelas. Sentou-se então o Insurrecto numa pedra do caminho e traçou na sua mente um mapa da sua viagem. Era um mapa curto, porque as mentes dos girassóis não são suficientemente amplas para armazenar mais ideias do que a de seguir o Sol, mas aquele girassol em particular não tinha a sua mente ocupada por semelhantes trivialidades, por isso pode imaginar um percurso e um destino, ainda que vagos. O percurso era recto, até à estrada que bordejava o campo de girassóis, e o destino era qualquer outro lado, porque não só a mente do girassol já estava entupida com a informação necessária para traçar um percurso recto, como nunca tinha ouvido falar de mais lado nenhum, e nem imaginava para onde se dirigir. Enquanto descansava numa pedra do caminho surgiu uma minhoca a correr. E disse-lhe o girassol:
- Ó minhoca, onde vais assim apressada?
A minhoca deu um salto, sobressaltada e exclamou:
- Foda-se, um girassol que fala!
Porque a minhoca era do Porto, e andava sempre a correr sem saber ao certo para onde ia, e com tanta pressa ia que tropeçou nos próprios pés e se estatelou ao comprido, o que foi um feito notável para uma minhoca.
- Tu pareces conhecer bem o mundo, minhocazinha, a correr assim apressada. Talvez me possas aconselhar acerca do meu destino.
Mas a minhoca esclareceu o girassol que só estava habituada a andar de metro, o que também era algo de notável para uma minhoca do Porto, e que não podia, em rigor, prestar-lhe grande auxílio, e seguiu apressadamente o seu caminho para ir comer uma francesinha.
O Insurrecto levantou-se e seguiu o seu caminho, em linha recta para a estrada. Atravessou mais duas fileiras de girassóis, cumprimentando-os um a um sem nunca receber resposta, e sentou-se mais um pouco. Foi nesse local solitário, no meio da multidão, que conheceu a libelinha. Foi um dia cheio de peripécias, sobretudo para a libelinha, que andava perdida, pois ali não havia poça nem charco, como convém a um campo de girassóis, e ela não sabia bem como tinha ido ali parar, mas pousou junto do girassol e entabulou conversa. E isto foi um grande feito para uma pobre libelinha perdida, pois não fazia ideia do que fosse "entabular", mas isso não a impediu de se aproximar pé ante pé e perguntar:
- Desculpe-me Sr Girassol, mas podia indicar-me o caminho para o meu charco?
O Insurrecto não respondeu, pois tinha-se descalçado e estava a massajar os dedos das raízes, doridas de tanto andar, e não imaginava que a conversa fosse com ele. Nunca ninguém lhe chamara Sr. Girassol.
- Desculpe-me Sr Girassol, mas podia indicar-me o caminho para o meu charco? - insistiu a libelinha, a medo.
O Insurrecto reparou então naquela voz fininha e respondeu gentilmente:
- Não faço ideia, pequena libelinha. Eu próprio não tenho a certeza do meu destino. Talvez tu me possas ajudar, voando acima deste campo e indicando-me a direcção da estrada.
A libelinha, desejosa de agradar, assim fez. Levantou voo acima de todos os outros girassóis, os surrectos, e gritou esganiçadamente lá de cima:
- Está quase fora do campo, Sr Girassol. Siga-me, que eu conduzo-o.
O Insurrecto calçou apressadamente as botas, fazendo um golpe num dedo, que começou a seivar, mas tanta era a excitação que nem ligou e correu atrás da libelinha até que saiu finalmente do emaranhado de girassóis.
Tanto espaço! Tanta terra! Tanta luz! Com um sorriso radioso nas pétalas, o Insurrecto encheu o peito, respirou fundo, olhou para trás, para o campo de onde tinha vindo, depois para cima, olhando desafiadoramente o Sol, esse lindo sol que dava luz e vida...
E nunca mais deixou de o fitar, seguindo obedientemente o seu percurso, acordando virado para Leste, almoçando virado para Sul e adormecendo quando o Sol se punha a Oeste.
A libelinha foi à procura do seu charco.
Mal tinha andado duas fileiras de girassóis, sentou-se e descansou um pouco, porque os girassóis andam devagar e cansam-se depressa, e além disso aquele estava cansado e com sono, porque em vez de dormir como todos os outros girassóis, tinha ficado acordado até tarde a ver a Lua e as estrelas. Sentou-se então o Insurrecto numa pedra do caminho e traçou na sua mente um mapa da sua viagem. Era um mapa curto, porque as mentes dos girassóis não são suficientemente amplas para armazenar mais ideias do que a de seguir o Sol, mas aquele girassol em particular não tinha a sua mente ocupada por semelhantes trivialidades, por isso pode imaginar um percurso e um destino, ainda que vagos. O percurso era recto, até à estrada que bordejava o campo de girassóis, e o destino era qualquer outro lado, porque não só a mente do girassol já estava entupida com a informação necessária para traçar um percurso recto, como nunca tinha ouvido falar de mais lado nenhum, e nem imaginava para onde se dirigir. Enquanto descansava numa pedra do caminho surgiu uma minhoca a correr. E disse-lhe o girassol:
- Ó minhoca, onde vais assim apressada?
A minhoca deu um salto, sobressaltada e exclamou:
- Foda-se, um girassol que fala!
Porque a minhoca era do Porto, e andava sempre a correr sem saber ao certo para onde ia, e com tanta pressa ia que tropeçou nos próprios pés e se estatelou ao comprido, o que foi um feito notável para uma minhoca.
- Tu pareces conhecer bem o mundo, minhocazinha, a correr assim apressada. Talvez me possas aconselhar acerca do meu destino.
Mas a minhoca esclareceu o girassol que só estava habituada a andar de metro, o que também era algo de notável para uma minhoca do Porto, e que não podia, em rigor, prestar-lhe grande auxílio, e seguiu apressadamente o seu caminho para ir comer uma francesinha.
O Insurrecto levantou-se e seguiu o seu caminho, em linha recta para a estrada. Atravessou mais duas fileiras de girassóis, cumprimentando-os um a um sem nunca receber resposta, e sentou-se mais um pouco. Foi nesse local solitário, no meio da multidão, que conheceu a libelinha. Foi um dia cheio de peripécias, sobretudo para a libelinha, que andava perdida, pois ali não havia poça nem charco, como convém a um campo de girassóis, e ela não sabia bem como tinha ido ali parar, mas pousou junto do girassol e entabulou conversa. E isto foi um grande feito para uma pobre libelinha perdida, pois não fazia ideia do que fosse "entabular", mas isso não a impediu de se aproximar pé ante pé e perguntar:
- Desculpe-me Sr Girassol, mas podia indicar-me o caminho para o meu charco?
O Insurrecto não respondeu, pois tinha-se descalçado e estava a massajar os dedos das raízes, doridas de tanto andar, e não imaginava que a conversa fosse com ele. Nunca ninguém lhe chamara Sr. Girassol.
- Desculpe-me Sr Girassol, mas podia indicar-me o caminho para o meu charco? - insistiu a libelinha, a medo.
O Insurrecto reparou então naquela voz fininha e respondeu gentilmente:
- Não faço ideia, pequena libelinha. Eu próprio não tenho a certeza do meu destino. Talvez tu me possas ajudar, voando acima deste campo e indicando-me a direcção da estrada.
A libelinha, desejosa de agradar, assim fez. Levantou voo acima de todos os outros girassóis, os surrectos, e gritou esganiçadamente lá de cima:
- Está quase fora do campo, Sr Girassol. Siga-me, que eu conduzo-o.
O Insurrecto calçou apressadamente as botas, fazendo um golpe num dedo, que começou a seivar, mas tanta era a excitação que nem ligou e correu atrás da libelinha até que saiu finalmente do emaranhado de girassóis.
Tanto espaço! Tanta terra! Tanta luz! Com um sorriso radioso nas pétalas, o Insurrecto encheu o peito, respirou fundo, olhou para trás, para o campo de onde tinha vindo, depois para cima, olhando desafiadoramente o Sol, esse lindo sol que dava luz e vida...
E nunca mais deixou de o fitar, seguindo obedientemente o seu percurso, acordando virado para Leste, almoçando virado para Sul e adormecendo quando o Sol se punha a Oeste.
A libelinha foi à procura do seu charco.
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