Velharia

- Estou a vender o meu amigo imaginário - respondeu ele.
- Como podes vender um amigo imaginário?
O moço, não percebendo o sentido da pergunta, explicou-se:
- Já não preciso dele. Já ando na escola, agora tenho amigos verdadeiros. Quer comprar o meu amigo imaginário?
A senhora ia explicar-lhe que não se podem vender coisas imaginárias, ou que os amigos não se vendem, mas o catraio antecipou-se e aprofundou a explicação, com lábia de vendedor.
- É um amigo muito bom, já o tenho há muito tempo. Divertimo-nos muito os dois. Chama-se Fernando e tem 6 anos, como eu. Gosta de jogar à bola e brincar com carrinhos. Se precisar de alguém com quem fazer isso, ele joga muito bem.
Depois segredou-lhe:
- Mas não jogue com ele às damas, ele faz batota.
A senhora ia seguir adiante, para ver as loiças de Limoges e os gravadores betamax, mas ele não lhe deu tempo.
- Compre-me o Fernando, eu tenho que ir para casa almoçar, e até agora não o consegui vender. Se não o vender aqui tenho que o levar de volta, e agora já não tenho tempo para brincar com ele. Tenho trabalhos de casa e amigos verdadeiros, e eles não gostam de jogar com ele, e ele sente-se sozinho. Vendo-lho por 2€.
A senhora, que já ia seguir adiante, pensou em todos os pratos de Limoges e livros do Júlio Verne que poderia comprar por 2€, e sendo uma boa alma, mas sobretudo porque não precisava de nenhum, tirou-os da carteira e deu-os ao miúdo, que os guardou no bolso e lhe agradeceu, antes de se virar para o lado e recomendar:
- Fernando, agora tens que ir com esta senhora. Eu já não posso ser mais teu amigo, mas ela vai brincar contigo e ser tua amiga. É uma senhora muito simpática e vai cuidar bem de ti e brincar contigo. Não faças batota às cartas, ou ela zanga-se. Se fores bonzinho e te portares bem, ela leva-te ao parque.
Virou-se para a senhora, que escutava aquilo meio espantada, meio enternecida.
- Leva, não leva?
Ela aquiesceu. Assim como assim, ao parque já ela ia regularmente, dar milho aos pombos.
- Trate bem dele, é o meu melhor amigo. Obrigado por cuidar dele.
E virou-se para dobrar a cadeira e o cartão.
A senhora seguiu para a próxima banca, já meio esquecida do incidente, mas uns dez metros mais adiante ouviu passos de quem corre e virou-se para ver o garoto que corria na sua direcção, arrastando a cadeira.
- Posso despedir-me outra vez do Fernando? Queria dar-lhe um abraço.
E sem esperar autorização e na falta de algo concreto para abraçar, agarrou-se à cintura da senhora e ela ouviu sussurar baixinho:
- Vou ter muitas saudades tuas.
Depois virou costas e afastou-se e ela nunca mais o viu.
Nunca mais pensou nos 2€, mas foi à noitinha, depois de arrumar o novo bule de Limoges na prateleira e de se sentar no sofá coberto por uma manta para ver televisão, que disse, sem pensar:
- O que sabe mesmo bem é este bocadinho ao fim do dia a ver a Roda da Sorte, não é, Fernando?
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