Velharia

Estava sentado numa cadeira, entre muitas outras pessoas que frequentavam a feira de velharias. A senhora ia a passar, vendo o que havia, mais para passar o tempo do que por interesse em comprar fosse o que fosse, e chamou-lhe a atenção o garoto sentado sozinho numa cadeira de praia. Não teria mais que uns 6 anos, e tinha encostado às canelas um pedaço de cartão onde estrava escrito a marcador preto "VENDESSE". Já outras pessoas tinham reparado naquilo, mas como não havia junto ao garoto nada que se vendesse, seguiram adiante, reparando em louças de Limoges, livros do Júlio Verne e gravadores de vídeo betamax, que outras pessoas tentavam vender com orgulho. O miúdo não parecia orgulhoso, quando muito um pouco triste, se é que parecia alguma coisa, e talvez fosse esse ar de tristeza, mais do que o neologismo do cartão, que a levou a perguntar-lhe o que vendia.
- Estou a vender o meu amigo imaginário - respondeu ele.
- Como podes vender um amigo imaginário?
O moço, não percebendo o sentido da pergunta, explicou-se:
- Já não preciso dele. Já ando na escola, agora tenho amigos verdadeiros. Quer comprar o meu amigo imaginário?
A senhora ia explicar-lhe que não se podem vender coisas imaginárias, ou que os amigos não se vendem, mas o catraio antecipou-se e aprofundou a explicação, com lábia de vendedor.
- É um amigo muito bom, já o tenho há muito tempo. Divertimo-nos muito os dois. Chama-se Fernando e tem 6 anos, como eu. Gosta de jogar à bola e brincar com carrinhos. Se precisar de alguém com quem fazer isso, ele joga muito bem.
Depois segredou-lhe:
- Mas não jogue com ele às damas, ele faz batota.
A senhora ia seguir adiante, para ver as loiças de Limoges e os gravadores betamax, mas ele não lhe deu tempo.
- Compre-me o Fernando, eu tenho que ir para casa almoçar, e até agora não o consegui vender. Se não o vender aqui tenho que o levar de volta, e agora já não tenho tempo para brincar com ele. Tenho trabalhos de casa e amigos verdadeiros, e eles não gostam de jogar com ele, e ele sente-se sozinho. Vendo-lho por 2€.
A senhora, que já ia seguir adiante, pensou em todos os pratos de Limoges e livros do Júlio Verne que poderia comprar por 2€, e sendo uma boa alma, mas sobretudo porque não precisava de nenhum,  tirou-os da carteira e deu-os ao miúdo, que os guardou no bolso e lhe agradeceu, antes de se virar para o lado e recomendar:
- Fernando, agora tens que ir com esta senhora. Eu já não posso ser mais teu amigo, mas ela vai brincar contigo e ser tua amiga. É uma senhora muito simpática e vai cuidar bem de ti e brincar contigo. Não faças batota às cartas, ou ela zanga-se. Se fores bonzinho e te portares bem, ela leva-te ao parque.
Virou-se para a senhora, que escutava aquilo meio espantada, meio enternecida.
- Leva, não leva?
Ela aquiesceu. Assim como assim, ao parque já ela ia regularmente, dar milho aos pombos.
- Trate bem dele, é o meu melhor amigo. Obrigado por cuidar dele.
E virou-se para dobrar a cadeira e o cartão.
A senhora seguiu para a próxima banca, já meio esquecida do incidente, mas uns dez metros mais adiante ouviu passos de quem corre e virou-se para ver o garoto que corria na sua direcção, arrastando a cadeira.
- Posso despedir-me outra vez do Fernando? Queria dar-lhe um abraço.
E sem esperar autorização e na falta de algo concreto para abraçar, agarrou-se à cintura da senhora e ela ouviu sussurar baixinho:
- Vou ter muitas saudades tuas.
Depois virou costas e afastou-se e ela nunca mais o viu.
Nunca mais pensou nos 2€, mas foi à noitinha, depois de arrumar o novo bule de Limoges na prateleira e de se sentar no sofá coberto por uma manta para ver televisão, que disse, sem pensar:
- O que sabe mesmo bem é este bocadinho ao fim do dia a ver a Roda da Sorte, não é, Fernando?

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