A Golpada

   Três homens conversavam à mesa do café. Chamemos-lhes, por conveniência, Sr. A, Sr. B e Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães. Era uma conversa banal, sobre as agruras da vida e as dificuldades dos tempos correntes. O Sr. B queixava-se de como a vida estava cara, e como o ordenado lhe era curto. O Sr. A, balofo e bem vestido, queixava-se do mesmo. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães pediu um café. O Sr. A fazia contas de cabeça, juntando facturas da água, luz e tv por cabo. O Sr. B acrescentou uma botija de gás e uma consulta de oftalmologia. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães dissolvia o açúcar mexendo o café com a mão esquerda. A conversa derivou para o que fariam se tivessem mais dinheiro e para como o conseguir. O Sr. A e o Sr. B concordaram que os jogadores de futebol é que a levavam boa, e que os políticos eram uma corja de corruptos que não tinham dificuldades financeiras. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães sugeriu assaltarem um banco. O Sr. A e o Sr. B riram-se e imaginaram-se a entrar numa agência da Caixa Geral de Depósitos de arma na mão e a gritarem "isto é um assalto". Entre gargalhadas repetiram: "isto é um assalto. Todos deitados no chão e passem para cá o dinheiro que ninguém se magoa". Riram-se outra vez e seguraram uma pistola imaginária apontando-a a Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães e exigindo-lhe "a bolsa ou a vida", como se fossem miúdos a brincar aos polícias e ladrões. O Sr. B perguntou se os bancos tinham detectores de metais à porta. O Sr. A respondeu que nunca tinha visto as pessoas descalçarem-se para entrar num banco, como fazem nos aeroportos. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães alvitrou que se não havia essas medidas de segurança, provavelmente teriam outras, como camaras de vigilância, seguranças e cães de guarda. Nem o Sr. A nem o Sr. B jamais haviam visto cães de guarda num banco, mas concordaram que haveria certamente outras medidas de segurança. Aliás, fez notar o Sr. B, provavelmente os bancos hoje em dia nem sequer teriam muito dinheiro, porque transacionavam sobretudo por via electrónica e não havia necessidade de acumular papel moeda. Melhor seria assaltar uma carrinha de valores, que passava por vários bancos e recolhia de diversas fontes, estaria mais bem provida. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães, com ar de entendido, achou que essas carrinhas mais facilmente levariam dinheiro PARA os bancos do que DOS bancos; provavelmente recolhê-lo-iam em supermercados ou parques aquáticos, onde as pessoas faziam pagamentos em dinheiro, e depois levavam-nos aos bancos. O Sr. B, também com ar de entendido, disse que as medidas de segurança dessas carrinhas seriam com certeza semelhantes às dos bancos, e ainda por cima não tinha a certeza que não houvesse dentro delas cães de guarda, porque nunca tinha entrado numa. O Sr. A, para não se dar por menos entendido que os amigos, recomendou que assaltassem antes um supermercado, uma vez que afinal era aí que estava o dinheiro, e todos sabiam quem eram os seguranças, que as portas estavam sempre abertas, e que as meninas da caixa não tinham treino específico de defesa pessoal para lidar com assaltantes. O Sr. B recomendou que fossem à hora de fechar, quando já quase não havia clientes e as caixas estavam cheias, depois de um dia de vendas. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães mencionou as câmaras de vigilância ligadas à central da Securitas e explicou que iam retirando o dinheiro das caixas ao longo do dia, para evitar situações daquelas. Um assalto ao Lidl às 9:30 da noite não renderia mais que uns 300€, que teriam que dividir por todos. Não era o suficiente para se reformarem numa vila piscatória da Guatemala, nem sequer para pagar a conta da luz. Os proveitos não compensariam os riscos. O Sr. B sugeriu então assaltar uma caixa multibanco, actividade que estava na moda, e que renderia certamente mais que 300€. O Sr. A, sempre pragmático, alertou para as questões logísticas: como tirariam a caixa multibanco da parede, como a transportariam,  como a abririam . Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães, o especialista, explicou que essas caixas tinham um sistema que manchava as notas de tinta se fossem abertas indevidamente, o que tornaria o saque inutilizável.
   Estudaram sucessivamente a possibilidade de assaltar uma casa de câmbio, um restaurante, uma joalharia e um vendedor de castanhas e todas descartaram  por um motivo ou outro, e foi quando estavam já quase resignados a envelhecer honestamente, acumulando dívidas como qualquer cidadão que se preze, que apareceu um amigo, a quem chamaremos, por conveniência, Sr. C. O Sr. C sentou-se à mesa e displicentemente o puseram a par da conversa. Sucede que este Sr. C tinha, também ele, contas para pagar, filhos na escola e impostos devidos, pelo que rapidamente se convenceu dos méritos da ideia, e foi dele a sugestão vencedora:
   - Podíamos assaltar a retrosaria da D. Berta.
Nunca ninguém tinha ouvido falar em assaltar uma retrosaria, nem que alguma tivesse alguma vez sido assaltada, o que tornaria o golpe (foi assim que passou a ser designado: O Golpe) um feito não só inesperado, como inédito, o que os poria, eventualmente, nos anais do crime. A notoriedade inchou-lhes o ego e fizeram uma pausa para se imaginarem numa vila piscatória da Guatemala, a comer peixe assado e a jogar dominó, gozando os proveitos d'O Golpe, enquanto os aldeões papalvos os admirariam secretamente pela sua audácia e fortuna. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães foi quem quebrou o encantamento, ao perguntar se uma retrosaria renderia tanto dinheiro que pudesse alimentá-los, e às famílias, pelo resto das suas vidas.
   Os cúmplices foram assertivos: certamente que sim. Toda a gente sabe que as retrosarias estão cheias de dinheiro. São frequentadas sobretudo por idosos, que não usam multibanco e fazem despesa avultada em metal sonante. Saberia ele, por acaso, quanto custa nestes dias um carrinho de linhas ou uma meada de lã? E depois, também é público que os velhotes não confiam no banco para guardar o dinheiro, pelo que a D. Berta, que já tem uma certa idade, terá com certeza uma ou duas caixas de bolachas cheias de dinheiro acumulado ao longo das décadas. Provavelmente ainda encontrariam umas notas de 5 contos ou moedas de 5 coroas. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães, céptico, duvidou da viabilidade de fugir com moedas de 5 coroas suficientes para garantir o futuro da quadrilha. Na sua opinião seria um carrego demasiado grande e pesado, além de que já não podiam ser trocadas no banco, e na Guatemala provavelmente não as aceitariam nem para comprar peixe assado. O Sr. A, sempre pragmático, explicou que as venderiam a coleccionadores através da internet, o que aumentaria o seu valor, e que quanto ao transporte bastaria utilizar um carro de fuga suficientemente grande e potente. Isto levantou o problema do carro de fuga, problema complicado, pois todos eles utilizavam o passe social, e não tinham posses para sustentar um automóvel, e não houve ninguém que não concordasse com a inviabilidade de efectuar eficazmente a fuga num autocarro interurbano da Viúva Carneiro & Filhos Lda, Empresa de Viação e Transportes. O Sr. B ainda aventou a possibilidade de utilizarem um carro de praça, mas foi veementemente criticado pela sugestão, já que isso implicaria integrar na quadrilha o chofer do veículo, e ninguém tinha vontade de dividir a maquia que lhe caberia por mais uma cabeça. Acabaram por aceitar que o Sr. B pedisse emprestada a carrinha em que o cunhado fazia a distribuição de bolas de Berlim durante o Verão, e que agora se encontrava parqueada no estacionamento subterrâneo do Continente local, à espera da época balnear. O Sr. C foi designado condutor de fuga, pois na juventude havia sido chofer de ambulância nos Bombeiros Voluntários da Brandoa. Traçaram o percurso da fuga, evitando astuciosamente as câmaras do trânsito e as portagens, e procuraram no Google Earth um local onde dividir o saque. Optaram por uma estação de serviço abandonada, perto de Alhos Vedros, porque tinha uma casa de banho que ainda tinha água corrente. Esta informação não vinha no Google Earth, mas o Sr. B conhecia-a. Depois decidiram como levar a cabo o assalto. O Sr. C ficaria no carro, com o motor a trabalhar, e vigiaria a rua, que era, geralmente, pouco frequentada. Caso visse algo suspeito, faria um ruído como o de uma raposa a regougar, para alertar os sequazes. Nenhum destes sabia que barulho fazia uma raposa a regougar, mas ninguém se lembrou desse pormenor, e também ninguém esperava que algo corresse mal. Os outros três entrariam calmamente, e comprariam 3 meias de senhora, as quais enfiariam em seguida lela cabeça de forma a não ser reconhecidos. O Sr. A, sempre pragmático, perguntou se as meias de senhora eram vendidas à unidade ou aos pares, o que obrigaria a desaproveitar uma das meias. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães explicou que um deles viria cá fora dar a meia sobrante ao condutor de fuga, que estaria ao volante do carro. O condutor de fuga argumentou que não conseguiria ver claramente com uma peúga enfiada na cabeça, o que comprometeria a sua condução de precisão a alta velocidade, além do que pareceria suspeito aos olhos dos transeuntes. Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães chamou a atenção para o facto de o carro de fuga ser um velho Morris Marina asmático, o qual dificilmente atingiria altas velocidades, e que era provavelmente até impossível de guiar com precisão, mas não conseguiu demover o Sr. C, o qual consentiu apenas em guardar a meia no bolso para usar na bomba de gasolina. O passo seguinte seria dominar a D. Berta. Todos concordaram que isso não seria difícil para três homens adultos, uma vez que a D. Berta tinha já perto de 80 anos e era coxa de uma perna, mas concordaram também que o assalto deveria ser efectuado com violência e à mão armada, porque ficava melhor nos anais do crime. Equacionaram a hipótese de uma arma branca, e o Sr. A lembrou que tinha um canivete suíço, um Victorinox, que podia ser usado para intimidar a senhora, ao mesmo tempo que facilitaria a abertura da embalagem das meias que planeavam comprar. Os amigos assentiram, algo desiludidos pela pouca espectacularidade da arma, mas passados uns momentos um deles, talvez o Sr. B, lembrou que na loja do chinês vendiam umas bisnagas que pareciam mesmo pistolas verdadeiras e que podiam ser usadas com vantagem: eram mais espectaculares e podiam comprar uma para cada um. Se a D. Berta resistisse, podiam então dar-lhe uma bisnagada e se isso não resultasse, o Sr A esfaqueá-la-ia com o canivete suíço. O Sr A, sempre pragmático, perguntou se deveriam violá-la, mas Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães achou que não haveria tempo. Concordaram que seria mais rápido esfaqueá-la, se não quisesse dizer onde guardava o dinheiro. O Sr. B ainda sugeriu dar-lhe uma coronhada na cabeça, mas acabou por admitir que talvez não fosse boa ideia, já que as bisnagas eram de plástico e podiam rachar e deixar um rasto de água que pudesse ser seguido até à bomba de gasolina. O especialista, Aniceto Custódio de Oliveira Guimarães falou então nas impressões digitais. Ninguém quis correr riscos de deixar impressões digitais no local do crime, e decidiram que comprariam, além das meias para pôr na cabeça, umas luvas de pelica que usariam durante o assalto. O pragmático Sr. A quis saber como abriria a lâmina do canivete com as luvas calçadas, mas os restantes facínoras explicaram-lhe que só usaria o canivete se as bisnagas não fossem suficientes para intimidar a D. Berta, o que era improvável. Combinaram o dia e a hora do assalto, e aprestaram-se e levá-lo a cabo.
   No dia e hora combinados, um Morris Marina branco estacionou ruidosamente perto da retrosaria da D. Berta. Da porta do passageiro saiu escorreitamente um homem vestido com uma roupa preta , um carapuço e óculos escuros. Da porta de trás saíram mais dois, massajando as nádegas, pois o carro tinha apenas dois lugares e vinham sentados no chão. Vinham vestidos de maneira semelhante, com sweatshirts escuras, carapuço e óculos escuros. Dentro do carro, que foi mantido a trabalhar, ficou ainda outro indivíduo, trajado da mesma forma.
   Os três homens dirigiram-se para a pequena loja, espreitaram antes de entrar, e confirmando que estava apenas a proprietária, uma senhora de idade, corcovada e coxa, entraram e pediram 2 pares de meias de senhora e 4 pares de luvas de pelica. Com vagar e dificuldade, a senhora rebuscou numas prateleiras atrás de si e perguntou de que cor queriam as luvas. Um deles ia para dizer "não interessa", mas outro antecipou-se e disse que queria dois pares verde azeitona, uma vermelho fosco e o outro amarelo.
   - Amarelo torrado ou amarelo canário? - perguntou a senhora.
   - Tanto faz. - interrompeu aquele que parecia ser o chefe.
  Nesta altura, um quarto indivíduo entrou no estabelecimento. Vinha vestido como os outros, e dirigiu-se ao chefe pedindo umas moedas para o parquímetro, pois estavam a demorar. O chefe repreendeu-o, mas deu-lhe 75 cêntimos e ele foi-se embora.
   A D. Berta pousou devagarinho as meias e as luvas em cima do balcão, perguntou se era mais alguma coisa e informou que eram 23€ e 36 cêntimos. O chefe rebuscou nos bolsos, tirou uma nota de 5€ e pediu o resto aos comparsas. Estes rebuscaram também nos bolsos, e juntando os trocos, concluíram que lhes faltavam 75 cêntimos. A velha senhora olhou-os com desconfiança, e guardou o material atrás do balcão. O homem mais alto endureceu o olhar, o que ninguém viu por causa dos óculos escuros, enfiou a mão no bolso tacteando o canivete, e pediu desculpa pelo incómodo.
Saíram todos e nunca mais voltaram.

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