O Funcionário Público
- Meus senhores, pedi-vos que reuníssemos porque temos que tomar uma resolução, ou uma atitude. A edilidade atravessa momentos difíceis, como sabeis, e temos que tomar medidas, ou atitudes, ou resoluções, que permitam obviar a esta dificuldade. Alguém tem ideias?
Após uma pausa, o Vereador da Qualidade do Ar ergueu a medo a mão.
- Eu acho que tenho uma ideia, mas não sei se será concretizável em medida ou atitude ou resolução.
- E o senhor é...? - inquiriu o Presidente da Assembleia.
- Vitorino Tancredo, Vereador da Qualidade do Ar. - esclareceu o edil.
- Nós temos um pelouro da qualidade do ar? - estranhou o presidente.
- Temo-lo desde a remodelação camarária de há 5 anos. - elucidou o vice-presidente.
- Porquê? Vivemos no campo, não há indústrias, centrais nucleares ou sequer suiniculturas que possam contaminá-lo.
- Pois, mas é o filho da D. Viviane, a irmã do Dr Tancredo. O rapaz terminou o curso, e não tinha emprego...
- Ah muito bem, já estou esclarecido. Então diga lá, Dr. Vitorino, qual era a sua ideia?
- Engenheiro. Bem, a minha ideia é que para poupar algum dinheiro podíamos dispensar algum pessoal não necessário.
- Como o vereador da qualidade do ar? Aqui não há indústrias, centrais nucleares ou suiniculturas, e mesmo o trânsito é reduzido. A qualidade do ar é boa.
- Vê como desempenho bem o meu trabalho? O Sr. Presidente acaba de o admitir: a qualidade do ar é boa, logo tenho um papel importante e trabalho eficazmente. Se ao menos a qualidade da água fosse igualmente boa...
O Vereador da Qualidade da Água sentiu-se, perante este comentário, e deu um pulo na cadeira:
- Se o Sr. Vereador quiser meter-se nos assuntos alheios, faça-o com conhecimento de causa. Fique sabendo que ainda recentemente um laboratório independente por nós escolhido analisou a água de diversos garrafões escolhidos aleatoriamente no mini-mercado da D. Alice, e todos eles tinham boa qualidade, portanto informe-se bem, antes de criticar a água municipal.
- Meus senhores, meus senhores, tende calma. Estas discussões a nada conduzem. De facto seria útil podermos dispensar alguém e aliviar o fardo da tesouraria, mas o lugar de nenhum de nós está em causa.
Vitorino Tancredo pediu de novo a palavra.
- De modo nenhum sugeri pôr à disposição qualquer dos nossos lugares. O que queria pôr à vossa consideração era que dispensássemos o carrasco municipal.
Na assembleia gerou-se um burburinho, enquanto cada um consultava o vizinho do lado para tentar saber se conheciam o carrasco municipal ou se tinham sequer conhecimento da sua existência. Foi de novo o Presidente quem pôs termo ao falatório.
- Mandem chamar o carrasco, para que possamos falar com ele.
Um assistente operacional dirigiu-se expeditamente ao gabinete do carrasco, que ficava no segundo andar, e pouco depois comparecia o dito perante a assembleia.
- O senhor é o carrasco municipal?
- Sou, sim senhor. E o senhor quem é?
- Eu sou o Presidente da Câmara, devia conhecer-me.
- Bem eu pensava que conhecia o Presidente da Câmara, mas não me lembro da sua cara. O senhor não é o dr. Carvalhal, pois não?
- O dr. Carvalhal já não é presidente da câmara há mais de 34 anos. O homem até já morreu!
- Morreu? Ah, coitado, era um presidente da câmara muito bom. Peço desculpa por não o reconhecer a si, mas sabe como é, os presidentes da Câmara estão sempre a mudar, é difícil acompanhar.
- Há quanto tempo é que o senhor trabalha na câmara municipal?
- Vai para 43 anos. Tomei o lugar do meu pai, quando ele se reformou.
- O seu pai também era carrasco?
- Sim, era um carrasco dos melhores. Executava sempre muito bem os condenados, nunca sobreviveu nenhum. Foi ele quem me ensinou o ofício. Desde pequenino que ia com ele para as execuções, e ele foi-me treinando para que um dia pudesse tomar o seu lugar.
- Mas executavam-se pessoas aqui no concelho?
- Ora essa! Pois com certeza que sim. Então o Sr. é Presidente da Câmara e não sabe disso?
- Nunca ouvi falar de tal.
Os vereadores e vogais da assembleia anuiram, uns com a cabeça, outros em voz baixa: nunca ninguém havia ouvido falar de tal.
- Pois com certeza que se executam pessoas. Que queria que se fizesse aos prevaricadores? Há alguma cadeia municipal?
O Vereador da Segurança interveio, algo envergonhado.
- Era para haver, mas fizemos as contas e não podíamos suportar a despesa. Eram precisas instalações, guardas, alimentação, cuidados de higiene, etc. Tivemos que desistir.
- Pois é. Mas para isso estava cá o meu pai. E agora eu.
- Mas quem executa você?
- Executo quem for necessário. Pessoas que estacionam em cima do passeio, ou alguns que não pagam a conta da água. Isso não sou eu quem decide, são os serviços municipais. Mandam-me um ofício a dizer: "segunda-feira, ás 10:30, é preciso executar a D. Adozinda ou o tio do Manel das Vacas" e eu vou, e executo.
- Mas isso é bárbaro. Só executa pessoas que não cumprem as obrigações fiscais? Criminosos de verdade, nunca executa?
- Bem, desses não aparecem muitos. Um ou outro crime passional, ou uma disputa de terras, mas quando fazem asneira, normalmente suicidam-se, não chegam às minhas mãos. Já esteve previsto decapitar uns vereadores e um ou outro Presidente da Câmara, por trafulhices e corrupções, mas à última da hora mudaram a lei e foram gerir a adega cooperativa. Mandam-me executar sobretudo velhotes e velhotas, que se esquecem de pagar as contas, ou não fazem correctamente a reciclagem do lixo. Quando o Lar está a ficar cheio, acontece muito. Coincidências...
- Mas o senhor decapita as pessoas?
- Às vezes decapito, mas é uma técnica que está a ficar ultrapassada. Qualquer dia já não haverá quem faça uma decapitação em condições, é uma arte que se está a perder. Assim como os tapetes de Arraiolos... Uma decapitação limpa, de uma vez só, já não há muito quem faça correctamente.
- Mas o Sr. decapita as pessoas com um machado?
- Pois claro. Por falar nisso, já que me chamou aqui, quero aproveitar para pedir um machado de decapitação novo, em condições. O que tenho está muito gasto. A lâmina foi afiada muitas vezes, está gasta, e o cabo também já está muito seboso, do uso. Veja bem, já era do meu pai.
- Usa o machado do seu pai?
- Não, o machado é da Câmara Municipal, a ferramenta tem que nos ser providenciada. Não podemos ter o nosso próprio material, o estatuto não o permite. Mas quando comprar, compre um machado de decapitação em condições. Nada daquelas porcarias do IKEA, que não têm qualidade nenhuma. Um machado de decapitação tem que ser próprio, não é daqueles para cortar pinheiros de Natal ou cutelos de talho. E já que falamos de material, a guilhotina também está a ficar velha.
- Também há uma guilhotina?
- Um carrasco tem que ter o material necessário, e em bom estado, ou alguma coisa pode falhar. E olhe que não há coisa mais aborrecida que uma decapitação mal feita, ou incompleta. É muito desagradável.
- Mas o senhor tem mesmo que andar por aí a cortar cabeças?
- Evidentemente que não. Sou um carrasco municipal, não um sapateiro que anda por aí a fazer biscates. Sou carrasco profissional. O meu pai pode ter-me treinado e incutido o gosto pela profissão, mas os senhores bem sabem que não se pode ser funcionário público sem formação adequada. Eu tenho o curso de carrasco. Corto cabeças com machado ou guilhotina, mas tenho também formação em enforcamento, electrocução e injecções letais. Também fiz um workshop de tortura, para o caso de vir a ser necessário.
- Falou em electrocução?
- Claro. A câmara teve em tempos uma cadeira eléctrica, mas venderam-na por causa do preço do quilovátio da EDP universal. Como carrasco diplomado tenho conhecimentos de electricidade, carpintaria e náuticos. É um curso muito abrangente. Estudamos química e enfermagem para preparar as injecções, carpintaria para fazer cadafalsos e electricidade para reparar cadeiras eléctricas. Também tenho umas noções de metalurgia, para reparar machados e guilhotinas (não basta afiá-los) e entendo bastante de nós, especialmente corrediços. Já enforquei um homem com um nó górdio, mas não foi boa ideia, porque depois não fui capaz de tirar-lhe o laço do pescoço e teve que ser enterrado com a corda e tudo. A família nunca me perdoou.
- Sendo carrasco há tanto tempo no município, imagino que não tenha muitos amigos. As famílias dos falecidos não devem ter-lhe grande afeição.
- Nem por isso, são bastante compreensivos, não guardam rancor. E sabe uma coisa, eu até sou uma pessoa bastante divertida, dou-me com toda a gente, e ando sempre a pregar partidas. Olhe, quando foi do avô Mateus, aquele velhote que estava sempre no parque a jogar dominó, foi uma galhofa. Veio um ofício a requisitar-me para o enforcar por ter estacionado a cadeira de rodas em cima dos canteiros, mas como estávamos sempre na brincadeira, enforquei-o com uma corda de bungee jumping. Foi uma paródia. Andou para baixo e para cima durante 20 minutos, e acabou por morrer de aborrecimento.
Farto de tanta conversa, o vereador da Qualidade do Ar interveio.
- Tudo isso é muito curioso, mas nós chamámo-lo cá foi para o despedir. Os seus serviços já não são necessários.
- Despedir-me? Não podem despedir-me, eu pertenço ao quadro.
- Talvez pertença, mas hoje em dia já não se executam pessoas, o senhor está obsoleto e é desnecessário. Faça as suas malas e desocupe o gabinete.
- Desocupar o gabinete? Mas tenho aquele gabinete há 43 anos. Eu sou do quadro, não podem despedir-me. Além disso que farão de todo o material que me está atribuído, se ninguém o puder usar? Machados, guilhotinas, seringas, etc. Isso é que é desperdício dos dinheiros públicos, não podem despedir-me.
O Presidente da Câmara, conhecedor de leis e regulamentos, confirmou:
- É verdade, Dr. Vitorino, não se pode despedir assim um funcionário do quadro, é mais complicado do que parece.
- Mas, Sr. Presidente, a contenção de despesas, o orçamento e a tesouraria... Temos funcionários a mais. É preciso livrarmo-nos de alguém.
- Pois, não deixa de ter razão, mas acho que já tenho a solução. Ó sr vereador da Segurança, faça aí um ofício para mandar executar o Vereador da Qualidade do Ar.
Após uma pausa, o Vereador da Qualidade do Ar ergueu a medo a mão.
- Eu acho que tenho uma ideia, mas não sei se será concretizável em medida ou atitude ou resolução.
- E o senhor é...? - inquiriu o Presidente da Assembleia.
- Vitorino Tancredo, Vereador da Qualidade do Ar. - esclareceu o edil.
- Nós temos um pelouro da qualidade do ar? - estranhou o presidente.
- Temo-lo desde a remodelação camarária de há 5 anos. - elucidou o vice-presidente.
- Porquê? Vivemos no campo, não há indústrias, centrais nucleares ou sequer suiniculturas que possam contaminá-lo.
- Pois, mas é o filho da D. Viviane, a irmã do Dr Tancredo. O rapaz terminou o curso, e não tinha emprego...
- Ah muito bem, já estou esclarecido. Então diga lá, Dr. Vitorino, qual era a sua ideia?
- Engenheiro. Bem, a minha ideia é que para poupar algum dinheiro podíamos dispensar algum pessoal não necessário.
- Como o vereador da qualidade do ar? Aqui não há indústrias, centrais nucleares ou suiniculturas, e mesmo o trânsito é reduzido. A qualidade do ar é boa.
- Vê como desempenho bem o meu trabalho? O Sr. Presidente acaba de o admitir: a qualidade do ar é boa, logo tenho um papel importante e trabalho eficazmente. Se ao menos a qualidade da água fosse igualmente boa...
O Vereador da Qualidade da Água sentiu-se, perante este comentário, e deu um pulo na cadeira:
- Se o Sr. Vereador quiser meter-se nos assuntos alheios, faça-o com conhecimento de causa. Fique sabendo que ainda recentemente um laboratório independente por nós escolhido analisou a água de diversos garrafões escolhidos aleatoriamente no mini-mercado da D. Alice, e todos eles tinham boa qualidade, portanto informe-se bem, antes de criticar a água municipal.
- Meus senhores, meus senhores, tende calma. Estas discussões a nada conduzem. De facto seria útil podermos dispensar alguém e aliviar o fardo da tesouraria, mas o lugar de nenhum de nós está em causa.
Vitorino Tancredo pediu de novo a palavra.
- De modo nenhum sugeri pôr à disposição qualquer dos nossos lugares. O que queria pôr à vossa consideração era que dispensássemos o carrasco municipal.
Na assembleia gerou-se um burburinho, enquanto cada um consultava o vizinho do lado para tentar saber se conheciam o carrasco municipal ou se tinham sequer conhecimento da sua existência. Foi de novo o Presidente quem pôs termo ao falatório.
- Mandem chamar o carrasco, para que possamos falar com ele.
Um assistente operacional dirigiu-se expeditamente ao gabinete do carrasco, que ficava no segundo andar, e pouco depois comparecia o dito perante a assembleia.
- O senhor é o carrasco municipal?
- Sou, sim senhor. E o senhor quem é?
- Eu sou o Presidente da Câmara, devia conhecer-me.
- Bem eu pensava que conhecia o Presidente da Câmara, mas não me lembro da sua cara. O senhor não é o dr. Carvalhal, pois não?
- O dr. Carvalhal já não é presidente da câmara há mais de 34 anos. O homem até já morreu!
- Morreu? Ah, coitado, era um presidente da câmara muito bom. Peço desculpa por não o reconhecer a si, mas sabe como é, os presidentes da Câmara estão sempre a mudar, é difícil acompanhar.
- Há quanto tempo é que o senhor trabalha na câmara municipal?
- Vai para 43 anos. Tomei o lugar do meu pai, quando ele se reformou.
- O seu pai também era carrasco?
- Sim, era um carrasco dos melhores. Executava sempre muito bem os condenados, nunca sobreviveu nenhum. Foi ele quem me ensinou o ofício. Desde pequenino que ia com ele para as execuções, e ele foi-me treinando para que um dia pudesse tomar o seu lugar.
- Mas executavam-se pessoas aqui no concelho?
- Ora essa! Pois com certeza que sim. Então o Sr. é Presidente da Câmara e não sabe disso?
- Nunca ouvi falar de tal.
Os vereadores e vogais da assembleia anuiram, uns com a cabeça, outros em voz baixa: nunca ninguém havia ouvido falar de tal.
- Pois com certeza que se executam pessoas. Que queria que se fizesse aos prevaricadores? Há alguma cadeia municipal?
O Vereador da Segurança interveio, algo envergonhado.
- Era para haver, mas fizemos as contas e não podíamos suportar a despesa. Eram precisas instalações, guardas, alimentação, cuidados de higiene, etc. Tivemos que desistir.
- Pois é. Mas para isso estava cá o meu pai. E agora eu.
- Mas quem executa você?
- Executo quem for necessário. Pessoas que estacionam em cima do passeio, ou alguns que não pagam a conta da água. Isso não sou eu quem decide, são os serviços municipais. Mandam-me um ofício a dizer: "segunda-feira, ás 10:30, é preciso executar a D. Adozinda ou o tio do Manel das Vacas" e eu vou, e executo.
- Mas isso é bárbaro. Só executa pessoas que não cumprem as obrigações fiscais? Criminosos de verdade, nunca executa?
- Bem, desses não aparecem muitos. Um ou outro crime passional, ou uma disputa de terras, mas quando fazem asneira, normalmente suicidam-se, não chegam às minhas mãos. Já esteve previsto decapitar uns vereadores e um ou outro Presidente da Câmara, por trafulhices e corrupções, mas à última da hora mudaram a lei e foram gerir a adega cooperativa. Mandam-me executar sobretudo velhotes e velhotas, que se esquecem de pagar as contas, ou não fazem correctamente a reciclagem do lixo. Quando o Lar está a ficar cheio, acontece muito. Coincidências...
- Mas o senhor decapita as pessoas?
- Às vezes decapito, mas é uma técnica que está a ficar ultrapassada. Qualquer dia já não haverá quem faça uma decapitação em condições, é uma arte que se está a perder. Assim como os tapetes de Arraiolos... Uma decapitação limpa, de uma vez só, já não há muito quem faça correctamente.
- Mas o Sr. decapita as pessoas com um machado?
- Pois claro. Por falar nisso, já que me chamou aqui, quero aproveitar para pedir um machado de decapitação novo, em condições. O que tenho está muito gasto. A lâmina foi afiada muitas vezes, está gasta, e o cabo também já está muito seboso, do uso. Veja bem, já era do meu pai.
- Usa o machado do seu pai?
- Não, o machado é da Câmara Municipal, a ferramenta tem que nos ser providenciada. Não podemos ter o nosso próprio material, o estatuto não o permite. Mas quando comprar, compre um machado de decapitação em condições. Nada daquelas porcarias do IKEA, que não têm qualidade nenhuma. Um machado de decapitação tem que ser próprio, não é daqueles para cortar pinheiros de Natal ou cutelos de talho. E já que falamos de material, a guilhotina também está a ficar velha.
- Também há uma guilhotina?
- Um carrasco tem que ter o material necessário, e em bom estado, ou alguma coisa pode falhar. E olhe que não há coisa mais aborrecida que uma decapitação mal feita, ou incompleta. É muito desagradável.
- Mas o senhor tem mesmo que andar por aí a cortar cabeças?
- Evidentemente que não. Sou um carrasco municipal, não um sapateiro que anda por aí a fazer biscates. Sou carrasco profissional. O meu pai pode ter-me treinado e incutido o gosto pela profissão, mas os senhores bem sabem que não se pode ser funcionário público sem formação adequada. Eu tenho o curso de carrasco. Corto cabeças com machado ou guilhotina, mas tenho também formação em enforcamento, electrocução e injecções letais. Também fiz um workshop de tortura, para o caso de vir a ser necessário.
- Falou em electrocução?
- Claro. A câmara teve em tempos uma cadeira eléctrica, mas venderam-na por causa do preço do quilovátio da EDP universal. Como carrasco diplomado tenho conhecimentos de electricidade, carpintaria e náuticos. É um curso muito abrangente. Estudamos química e enfermagem para preparar as injecções, carpintaria para fazer cadafalsos e electricidade para reparar cadeiras eléctricas. Também tenho umas noções de metalurgia, para reparar machados e guilhotinas (não basta afiá-los) e entendo bastante de nós, especialmente corrediços. Já enforquei um homem com um nó górdio, mas não foi boa ideia, porque depois não fui capaz de tirar-lhe o laço do pescoço e teve que ser enterrado com a corda e tudo. A família nunca me perdoou.
- Sendo carrasco há tanto tempo no município, imagino que não tenha muitos amigos. As famílias dos falecidos não devem ter-lhe grande afeição.
- Nem por isso, são bastante compreensivos, não guardam rancor. E sabe uma coisa, eu até sou uma pessoa bastante divertida, dou-me com toda a gente, e ando sempre a pregar partidas. Olhe, quando foi do avô Mateus, aquele velhote que estava sempre no parque a jogar dominó, foi uma galhofa. Veio um ofício a requisitar-me para o enforcar por ter estacionado a cadeira de rodas em cima dos canteiros, mas como estávamos sempre na brincadeira, enforquei-o com uma corda de bungee jumping. Foi uma paródia. Andou para baixo e para cima durante 20 minutos, e acabou por morrer de aborrecimento.
Farto de tanta conversa, o vereador da Qualidade do Ar interveio.
- Tudo isso é muito curioso, mas nós chamámo-lo cá foi para o despedir. Os seus serviços já não são necessários.
- Despedir-me? Não podem despedir-me, eu pertenço ao quadro.
- Talvez pertença, mas hoje em dia já não se executam pessoas, o senhor está obsoleto e é desnecessário. Faça as suas malas e desocupe o gabinete.
- Desocupar o gabinete? Mas tenho aquele gabinete há 43 anos. Eu sou do quadro, não podem despedir-me. Além disso que farão de todo o material que me está atribuído, se ninguém o puder usar? Machados, guilhotinas, seringas, etc. Isso é que é desperdício dos dinheiros públicos, não podem despedir-me.
O Presidente da Câmara, conhecedor de leis e regulamentos, confirmou:
- É verdade, Dr. Vitorino, não se pode despedir assim um funcionário do quadro, é mais complicado do que parece.
- Mas, Sr. Presidente, a contenção de despesas, o orçamento e a tesouraria... Temos funcionários a mais. É preciso livrarmo-nos de alguém.
- Pois, não deixa de ter razão, mas acho que já tenho a solução. Ó sr vereador da Segurança, faça aí um ofício para mandar executar o Vereador da Qualidade do Ar.
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