Memoirs
Antes que me esqueça, decidi escrever as minhas memórias.
Não sei ao certo se é adequado uma pessoa vulgar escrever as suas memórias, ou se é necessário ser um grande homem, com grandes feitos, prémios, comendas ou nome na toponímia local, mas se porventura atingir algum desses estatutos, estarei demasiado ocupado a fazer conferências ou a dar entrevistas para ter tempo a escrever memórias, por isso mais vale fazê-lo já, enquanto tenho disponibilidade.
O passo seguinte é descobrir a estrutura das minhas memórias. Em que diferem de uma autobiografia? Poderei contratar um escritor conceituado para as redigir, ou tenho que ser eu a fazer isso? É que assim parece um esforço sobre-humano, talvez hercúleo: lembrar-me das coisas, E escrevê-las. Se bem me conheço, enquanto estiver a escrever uma memória, vou esquecer-me de como acaba. Não tenho ideia de o Super-Homem ou o Hércules terem alguma vez escrito as suas memórias.
Depois há a questão do título. Não posso chamar-lhe apenas "As Minhas Memórias", é um bocado vago e nada pessoal. "Memórias do Cárcere" parece um título atractivo, mas nunca estive encarcerado, não sou o Conde de Monte Cristo. Talvez escolha algo com uma referência a um dia da semana, ou uma hora do dia: "Memórias das Dez P´rás Duas", ou algo assim sonante.
Em seguida devo decidir de que forma as apresentar. Posso fazer um livro encadernado com capa dura e letras gravadas a dourado, parece algo importante e duradouro, feito para interessar a uns poucos intelectuais. Por outro lado, talvez seja melhor uma edição em livro de bolso, com letra miudinha e sem ilustrações, para chegar às massas. Possivelmente em dois volumes: "Memórias das Dez P´rás Duas, Tomo I". Assim, com números romanos. Ou então edito as minhas memórias em fascículos, para que depois os leitores os possam mandar encadernar a seu gosto. Posso editar um fascículo por cada ano da minha vida e oferecer uma lembrança com cada um deles, por apenas mais 3€. Isso deverá tornar o assunto mais comercialmente viável. "Memórias das Dez P´rás Duas", por apenas mais 3€ coleccione os pares de peúgas.
Agora falta apenas escolher uma boa linha de abertura, e a seguir contar, para que todo o mundo saiba, as aventuras e desventuras porque passei ao longo da minha atribulada vida. Vai haver revelações bombásticas, coisas até hoje insuspeitadas, sobre pessoas importantes, daí que seja necessário prender o leitor desde o princípio. Até tinha um bom início para um livro de memórias: "se bem me lembro..." mas consta-me que já está muito visto. Vou optar por algo igualmente cativante, mas não tão popular:
Há muitos, muitos anos atrás, nasci eu. Foi um nascimento auspicioso, mas lembro-me bem que não houve fanfarras nem honras de abertura do telejornal, e isto por dois motivos:
- inveja é o primeiro. Os poderes instituídos envidaram desde o início todos os esforços para diminuir o impacto que eu podia ter na sociedade. Não por receio, porque nunca fui contestatário nem aspirei a derrubar o regime, mas porque sempre temeram que um dia eu pudesse vir a escrever um livro de memórias que contivesse declarações bombásticas sobre pessoas importantes, coisa que não está ao alcance de qualquer um, e portanto desde o meu nascimento que quiseram retirar-me importância.
- o segundo motivo tem a ver com a negatividade deste nosso povo. A verdade é que celebram sempre a morte de um grande homem, mas jamais o seu nascimento, e isso foi o que se passou também comigo.
Dos primeiros anos da minha vida não me lembro bem. Era muito novo, tenho apenas recordações fugazes, nenhuma delas susceptível de fazer parar o mundo. Mal me lembro das primeiras palavras que disse, mas sei o que disse quando comecei a andar: "um pequeno passo para mim..." e do resto esqueci-me. Não me recordo de ter varicela, nem de ir sozinho ao penico pela primeira vez, o que é pena, porque daria dois fascículos interessantes, possivelmente de colecionador.
A minha primeira memória concreta é de quando fui para a escola. Um acontecimento para esquecer! Nem quero lembrar-me, foi das piores coisas que me aconteceram, e durou muitos anos. Anos que prefiro esquecer. Não quero falar disso.
A minha primeira memória feliz é da minha primeira cerveja. Lembro-me bem, era fresca, loura e tinha gás (gaz, na altura). Das seguintes já não me lembro tão bem, apenas da dor de cabeça que se lhes seguiu. Por vezes ouço comentários de episódios sucedidos nessa época, mas parecem-me exagerados e pouco credíveis. De resto, essas memórias não são minhas, por isso não têm cabimento aqui.
Assim se passaram anos, até que a idade e a velhice obliteraram as memórias agradáveis que convosco partilhei. Agora não me lembro de nada. Esqueço-me de fazer pisca nos cruzamentos, de comprar prendas de aniversário e de pagar o IMI. Há quem pense que o faço propositadamente, para melindrar ou ofender, e seria bem capaz disso, se me lembrasse, mas não é o caso. Comecei a tomar medicamentos para a memória, mas tinha que os tomar a horas certas e não me lembrava de quais eram.
Não sei ao certo se é adequado uma pessoa vulgar escrever as suas memórias, ou se é necessário ser um grande homem, com grandes feitos, prémios, comendas ou nome na toponímia local, mas se porventura atingir algum desses estatutos, estarei demasiado ocupado a fazer conferências ou a dar entrevistas para ter tempo a escrever memórias, por isso mais vale fazê-lo já, enquanto tenho disponibilidade.
O passo seguinte é descobrir a estrutura das minhas memórias. Em que diferem de uma autobiografia? Poderei contratar um escritor conceituado para as redigir, ou tenho que ser eu a fazer isso? É que assim parece um esforço sobre-humano, talvez hercúleo: lembrar-me das coisas, E escrevê-las. Se bem me conheço, enquanto estiver a escrever uma memória, vou esquecer-me de como acaba. Não tenho ideia de o Super-Homem ou o Hércules terem alguma vez escrito as suas memórias.
Depois há a questão do título. Não posso chamar-lhe apenas "As Minhas Memórias", é um bocado vago e nada pessoal. "Memórias do Cárcere" parece um título atractivo, mas nunca estive encarcerado, não sou o Conde de Monte Cristo. Talvez escolha algo com uma referência a um dia da semana, ou uma hora do dia: "Memórias das Dez P´rás Duas", ou algo assim sonante.
Em seguida devo decidir de que forma as apresentar. Posso fazer um livro encadernado com capa dura e letras gravadas a dourado, parece algo importante e duradouro, feito para interessar a uns poucos intelectuais. Por outro lado, talvez seja melhor uma edição em livro de bolso, com letra miudinha e sem ilustrações, para chegar às massas. Possivelmente em dois volumes: "Memórias das Dez P´rás Duas, Tomo I". Assim, com números romanos. Ou então edito as minhas memórias em fascículos, para que depois os leitores os possam mandar encadernar a seu gosto. Posso editar um fascículo por cada ano da minha vida e oferecer uma lembrança com cada um deles, por apenas mais 3€. Isso deverá tornar o assunto mais comercialmente viável. "Memórias das Dez P´rás Duas", por apenas mais 3€ coleccione os pares de peúgas.
Agora falta apenas escolher uma boa linha de abertura, e a seguir contar, para que todo o mundo saiba, as aventuras e desventuras porque passei ao longo da minha atribulada vida. Vai haver revelações bombásticas, coisas até hoje insuspeitadas, sobre pessoas importantes, daí que seja necessário prender o leitor desde o princípio. Até tinha um bom início para um livro de memórias: "se bem me lembro..." mas consta-me que já está muito visto. Vou optar por algo igualmente cativante, mas não tão popular:
Há muitos, muitos anos atrás, nasci eu. Foi um nascimento auspicioso, mas lembro-me bem que não houve fanfarras nem honras de abertura do telejornal, e isto por dois motivos:
- inveja é o primeiro. Os poderes instituídos envidaram desde o início todos os esforços para diminuir o impacto que eu podia ter na sociedade. Não por receio, porque nunca fui contestatário nem aspirei a derrubar o regime, mas porque sempre temeram que um dia eu pudesse vir a escrever um livro de memórias que contivesse declarações bombásticas sobre pessoas importantes, coisa que não está ao alcance de qualquer um, e portanto desde o meu nascimento que quiseram retirar-me importância.
- o segundo motivo tem a ver com a negatividade deste nosso povo. A verdade é que celebram sempre a morte de um grande homem, mas jamais o seu nascimento, e isso foi o que se passou também comigo.
Dos primeiros anos da minha vida não me lembro bem. Era muito novo, tenho apenas recordações fugazes, nenhuma delas susceptível de fazer parar o mundo. Mal me lembro das primeiras palavras que disse, mas sei o que disse quando comecei a andar: "um pequeno passo para mim..." e do resto esqueci-me. Não me recordo de ter varicela, nem de ir sozinho ao penico pela primeira vez, o que é pena, porque daria dois fascículos interessantes, possivelmente de colecionador.
A minha primeira memória concreta é de quando fui para a escola. Um acontecimento para esquecer! Nem quero lembrar-me, foi das piores coisas que me aconteceram, e durou muitos anos. Anos que prefiro esquecer. Não quero falar disso.
A minha primeira memória feliz é da minha primeira cerveja. Lembro-me bem, era fresca, loura e tinha gás (gaz, na altura). Das seguintes já não me lembro tão bem, apenas da dor de cabeça que se lhes seguiu. Por vezes ouço comentários de episódios sucedidos nessa época, mas parecem-me exagerados e pouco credíveis. De resto, essas memórias não são minhas, por isso não têm cabimento aqui.
Assim se passaram anos, até que a idade e a velhice obliteraram as memórias agradáveis que convosco partilhei. Agora não me lembro de nada. Esqueço-me de fazer pisca nos cruzamentos, de comprar prendas de aniversário e de pagar o IMI. Há quem pense que o faço propositadamente, para melindrar ou ofender, e seria bem capaz disso, se me lembrasse, mas não é o caso. Comecei a tomar medicamentos para a memória, mas tinha que os tomar a horas certas e não me lembrava de quais eram.
Ainda bem que tive a ideia de escrever as minhas memórias, antes que me esquecesse de o fazer. E se mais nada restar, fico ao menos com um bom título: "Memórias de um Amnésico".
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