Um Café dos Diabos

Ora foi precisamente numa dessas ocasiões, em que eu quis, que me apeteceu tomar um cafezinho de manhã, em vez de sair para ir comprar o jornal (outro hábito obsoleto do século XX). Tirei o meu cafezinho, deitei-lhe meio pacote de açúcar (estou a treinar para ser saudável) e levei a chávena para a mesa do pequeno almoço, onde me sentei a desenhar distraidamente figuras geométricas na espuma do café acabadinho de fazer. Estes cafés modernos têm uma espuma fantástica, só comparável à da imperial acabadinha de tirar, e até dão para desenhar, embora os meus dotes artísticos não me permitam mais do que o desenho geométrico, e mesmo assim não muito preciso. Nesta ocasião o café estava particularmente quente, até fumegava, e o desenho estava a sair-me bem, com círculos e triângulos e até um hexágono, todos diminutos, já se vê, mas perfeitinhos na sua liliputiana grandeza, e enquanto desenhava, até pareceu que o café fumegava mais. Vendo bem, não era impressão nenhuma, fumegava mais do que assim que fora tirado, e antes que tivesse tempo de perceber porquê, saiu de dentro da chávena um demónio, completo com chifres, cauda de ponta triangular e forquilha.
- Quem me conjurou? - perguntou com voz de trovão.
Eu fiquei um bocado atrapalhado, por ver sair da chávena do café semelhante figura, mas tive presença de espírito suficiente para responder calmamente:
- Deve haver um engano, só aqui estou eu e não conjurei ninguém. De certeza que tem a morada certa?
- Não me conjuraste? Ter-me-ás convocado ou invocado?
- Nem conjurei, nem invoquei, convoquei ou evoquei. Deve haver um equivoco. Estava simplesmente a mexer o café.
- Ah, meu descuidado. Não terás desenhado nesse teu café algum pentagrama cabalístico que me tenha feito subir dos infernos até aqui? E eu que estava lá tão quentinho...
- Eu fiz isso? Sou incapaz de fazer um desenho que jeito tenha, como iria fazer uma coisa dessas? Se o fiz foi por acidente, peço desculpa.
- Desculpa? Chamas-me, fazes-me subir a este reino gelado e achas que basta pedir desculpa? À fé de Belzebu, vou ter que ficar com a tua alma. Pede-me qualquer coisa em troca dela.
- Obrigado, mas não preciso de nada. Tenho realmente muita pena de o ter incomodado, mas foi sem intenção.
- Desculpas não se pedem, evitam-se, mísero mortal. Estou farto delas. Achas que és o primeiro a chamar-me cá acima sem motivo válido? Desde que as artes ocultas entraram na moda, que não faço outra coisa senão andar para cima e para baixo, a acorrer a este e àquele, sempre com bruxarias e invocações. Já não há descanso. E agora tens o desplante de me dizer que me conjuraste, não apenas em vão, mas por acidente?
- Pois é como lhe digo, foi sem querer. Não me apercebi de que estava a desenhar algo com poderes mágicos. Estava apenas a rabiscar no café.
- Ainda por cima um não crente. Ao que chegámos!
- Já sei que não quer que lhe peça desculpa, não sei que mais lhe diga. Olhe, aceita um cafezinho e um pastel de nata? Tenho ali uns, que não são de Belém mas são muito bons.
- Pretendes evitar a condenação eterna oferecendo-me um pastel de nata?
- Olhe que são uma especialidade.
- Pretendes evitar a condenação eterna oferecendo-me um pastel de nata?
- Olhe que são uma especialidade.
- Tens canela?
- Canela e açúcar em pó, como manda a lei.
- Então aceito, sim. - disse o demónio enquanto puxava uma cadeira e ajeitava a capa. - Nem fazes ideia de como é difícil encontrar um bom pastel de nata nos infernos. Vêm sempre com a nata queimada, e a massa toda mole, em vez de estaladiça.
- Pois estes são muito bons. São de uma pastelaria ali ao fundo da rua, que tem fabrico próprio.
- Ah, o Sr. Gilberto? Conheço muito bem, fiquei-lhe uma vez com a alma, em troca de uma receita de pastéis de nata. Queria fazer fortuna à conta deles...
- Pois os pastéis são muito bons, mas o homem não fez fortuna nenhuma, continua a trabalhar de manhã à noite, coitado. Não lhe devolveu a alma, uma vez que que continua pobre?
- Nada disso. O negócio foi a alma em troco da receita. Mais não posso dizer, que o segredo é a alma do negócio, no negócio das almas.
- Tem muitas almas? Deve ser confuso, gerir todos os pedidos. Imagino que alguns não sejam muito fáceis.
- Os tempos vão difíceis. Já não há tantas pessoas a querer fazer pactos com o diabo como antigamente. Olha lá, ainda se diz "pactos com o diabo" ou agora tem que ser "patos com o diabo"? Não soa tão bem...
- Não tenho a certeza. Eu digo "pactos", mas já não sei de nada.
- Pois é, já ninguém sabe nada. Esse malfadado acordo foi obra do Lúcifer, para encher o ego de meia dúzia de doutores. Até ele voltaria atrás, se pudesse, mas é um demónio de palavra. Está dito, está dito. Mas esses doutores vão pagá-las bem, quando os apanharmos lá em baixo.
- Sim, para pedidos difíceis, esse foi mesmo uma trapalhada dos diabos (se me é permitida a expressão). Então o negócio vai mal...
- Não vai lá muito bem, não. As almas desvalorizaram muito, os pedidos são agora mais modestos. É sempre a mesma coisa, querem fortuna e honrarias. Já há pouco quem queira conhecimento ou vida eterna. E depois há aquele chato do Satanás, que fica sempre com os melhores negócios. E o Asmodeu, que fica com as garinas todas. Está difícil preencher as quotas. E ainda tenho que acorrer cada vez que me chamam ou conjuram. Uma vida infernal.
- Pois, acerca disso não sei que mais lhe diga. Se lhe serve de consolo, há pouca probabilidade de o invocar outra vez, porque nem sei o que desenhei. Mas apareça quando quiser para tomar um cafezinho ou um bolo de arroz.
- Sou capaz disso. Foi simpático da tua parte oferecer-me o café. A maior parte das pessoas não se dá a esse trabalho. Basta verem um demónio, ficam logo aflitos, e esquecem as boas maneiras. Tentam enxotar-me com preces e crucifixos e nem os bons dias me dão. É só exorcismos e arrependimentos, mas educação, não mostram nenhuma. Souberam-me bem, estes dois dedos de conversa. Tens a certeza que não queres vender a tua alma?
- Não, deixe estar, não preciso de nada.
- Não queres saúde, ou dinheiro, ou pessoa amada...
- Não, estou bem assim, obrigado. Olhe, leve um bombom para a viagem. Apareça sempre.
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