Um Café dos Diabos

   Se há coisa boa que o século XXI trouxe, são as máquinas domésticas de fazer café expresso. Acabou-se a necessidade de sair à noite, por vezes com chuva, frio ou mau tempo, para ir tomar o cafezinho depois do jantar. Agora basta pôr a cápsula na máquina, premir o botão, e aqui temos a nossa bica pronta a consumir logo a seguir à refeição, como se estivéssemos no restaurante. Um luxo! E não apenas após as refeições, está disponível sempre que queiramos.
   Ora foi precisamente numa dessas ocasiões, em que eu quis, que me apeteceu tomar um cafezinho de manhã, em vez de sair para ir comprar o jornal (outro hábito obsoleto do século XX). Tirei o meu cafezinho, deitei-lhe meio pacote de açúcar (estou a treinar para ser saudável) e levei a chávena para a mesa do pequeno almoço, onde me sentei a desenhar distraidamente figuras geométricas na espuma do café acabadinho de fazer. Estes cafés modernos têm uma espuma fantástica, só comparável à da imperial acabadinha de tirar, e até dão para desenhar, embora os meus dotes artísticos não me permitam mais do que o desenho geométrico, e mesmo assim não muito preciso. Nesta ocasião o café estava particularmente quente, até fumegava, e o desenho estava a sair-me bem, com círculos e triângulos e até um hexágono, todos diminutos, já se vê, mas perfeitinhos na sua liliputiana grandeza, e enquanto desenhava, até pareceu que o café fumegava mais. Vendo bem, não era impressão nenhuma, fumegava mais do que assim que fora tirado, e antes que tivesse tempo de perceber porquê, saiu de dentro da chávena um demónio, completo com chifres, cauda de ponta triangular e forquilha.
   - Quem me conjurou? - perguntou com voz de trovão.
   Eu fiquei um bocado atrapalhado, por ver sair da chávena do café semelhante figura, mas tive presença de espírito suficiente para responder calmamente:
   - Deve haver um engano, só aqui estou eu e não conjurei ninguém. De certeza que tem a morada certa?
   - Não me conjuraste? Ter-me-ás convocado ou invocado?
   - Nem conjurei, nem invoquei, convoquei ou evoquei. Deve haver um equivoco. Estava simplesmente a mexer o café.
   - Ah, meu descuidado. Não terás desenhado nesse teu café algum pentagrama cabalístico que me tenha feito subir dos infernos até aqui? E eu que estava lá tão quentinho...
   - Eu fiz isso? Sou incapaz de fazer um desenho que jeito tenha, como iria fazer uma coisa dessas? Se o fiz foi por acidente, peço desculpa.
   - Desculpa?  Chamas-me, fazes-me subir a este reino gelado e achas que basta pedir desculpa? À fé de Belzebu, vou ter que ficar com a tua alma. Pede-me qualquer coisa em troca dela.
   - Obrigado, mas não preciso de nada. Tenho realmente muita pena de o ter incomodado, mas foi sem intenção.
   - Desculpas não se pedem, evitam-se, mísero mortal. Estou farto delas. Achas que és o primeiro a chamar-me cá acima sem motivo válido? Desde que as artes ocultas entraram na moda, que não faço outra coisa senão andar para cima e para baixo, a acorrer a este e àquele, sempre com bruxarias e invocações. Já não há descanso. E agora tens o desplante de me dizer que me conjuraste, não apenas em vão, mas por acidente?
   - Pois é como lhe digo, foi sem querer. Não me apercebi de que estava a desenhar algo com poderes mágicos. Estava apenas a rabiscar no café.
   - Ainda por cima um não crente. Ao que chegámos!
   - Já sei que não quer que lhe peça desculpa, não sei que mais lhe diga. Olhe, aceita um cafezinho e um pastel de nata? Tenho ali uns, que não são de Belém mas são muito bons.
   - Pretendes evitar a condenação eterna oferecendo-me um pastel de nata?
   - Olhe que são uma especialidade.
   - Tens canela?
   - Canela e açúcar em pó, como manda a lei.
   - Então aceito, sim. - disse o demónio enquanto puxava uma cadeira e ajeitava a capa. - Nem fazes ideia de como é difícil encontrar um bom pastel de nata nos infernos. Vêm sempre com a nata queimada, e a massa toda mole, em vez de estaladiça.
   - Pois estes são muito bons. São de uma pastelaria ali ao fundo da rua, que tem fabrico próprio.
   - Ah, o Sr. Gilberto? Conheço muito bem, fiquei-lhe uma vez com a alma, em troca de uma receita de pastéis de nata. Queria fazer fortuna à conta deles...
   - Pois os pastéis são muito bons, mas o homem não fez fortuna nenhuma, continua a trabalhar de manhã à noite, coitado. Não lhe devolveu a alma, uma vez que que continua pobre?
   - Nada disso. O negócio foi a alma em troco da receita. Mais não posso dizer, que o segredo é a alma do negócio, no negócio das almas.
   - Tem muitas almas? Deve ser confuso, gerir todos os pedidos. Imagino que alguns não sejam muito fáceis.
   - Os tempos vão difíceis. Já não há tantas pessoas a querer fazer pactos com o diabo como antigamente. Olha lá, ainda se diz "pactos com o diabo" ou agora tem que ser "patos com o diabo"? Não soa tão bem...
   - Não tenho a certeza. Eu digo "pactos", mas já não sei de nada.
   - Pois é, já ninguém sabe nada. Esse malfadado acordo foi obra do Lúcifer, para encher o ego de meia dúzia de doutores. Até ele voltaria atrás, se pudesse, mas é um demónio de palavra. Está dito, está dito. Mas esses doutores vão pagá-las bem, quando os apanharmos lá em baixo.
   - Sim, para pedidos difíceis, esse foi mesmo uma trapalhada dos diabos (se me é permitida a expressão). Então o negócio vai mal...
   - Não vai lá muito bem, não. As almas desvalorizaram muito, os pedidos são agora mais modestos. É sempre a mesma coisa, querem fortuna e honrarias. Já há pouco quem queira conhecimento ou vida eterna. E depois há aquele chato do Satanás, que fica sempre com os melhores negócios. E o Asmodeu, que fica com as garinas todas. Está difícil preencher as quotas. E ainda tenho que acorrer cada vez que me chamam ou conjuram. Uma vida infernal.
   - Pois, acerca disso não sei que mais lhe diga. Se lhe serve de consolo, há pouca probabilidade de o invocar outra vez, porque nem sei o que desenhei. Mas apareça quando quiser para tomar um cafezinho ou um bolo de arroz.
   - Sou capaz disso. Foi simpático da tua parte oferecer-me o café. A maior parte das pessoas não se dá a esse trabalho. Basta verem um demónio, ficam logo aflitos, e esquecem as boas maneiras. Tentam enxotar-me com preces e crucifixos e nem os bons dias me dão. É só exorcismos e arrependimentos, mas educação, não mostram nenhuma. Souberam-me bem, estes dois dedos de conversa. Tens a certeza que não queres vender a tua alma?
   - Não, deixe estar, não preciso de nada.
   - Não queres saúde, ou dinheiro, ou pessoa amada...
   - Não, estou bem assim, obrigado. Olhe, leve um bombom para a viagem. Apareça sempre.

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