Free As a Bird
Desde que o Homem ainda não era bem Homem, que o Homem caça. Foi no dealbar da Humanidade que um dos nossos peludos e corcovados antepassados, ergueu uma proeminente arcada supraciliar e resmungou:
- Estou farto de bagas e raízes.
Abandonou a economia recolectora, e entregou-se aos prazeres da carne. Primeiro crua, depois mal passada, e hoje em dia excentricamente confeccionada, em doses diminutas, e de tal forma que se comem hoje bifes de soja. Ah, se os Neandertais tivessem imaginado tal coisa! Como teria sido fácil caçar uns pés de soja em vez de um auroque! Mas a cozinha química é coisa recente, e as quintas de criação de perus, também, pelo que caçar foi durante muitos anos uma necessidade. E foi também um gosto e uma arte. Desde a falcoaria à caça da raposa e ao uso de furões, o Homem serviu-se das capacidades predatórias dos seus amigos animais para se tornar inimigo dos animais. A caça evoluiu de actividade de sobrevivência para passatempo e foi depois elevada à categoria de desporto, parando às portas do Comité Olímpico Internacional, que não permitiu que se atirasse sobre animaizinhos indefesos, substituindo-os por alvos estáticos e pratos voadores, em que os desportistas podiam praticar para depois mais facilmente acertar em veados imóveis e patos migratórios.
Mas o instinto está lá, e tal como se pode tirar o Tarzan da selva, mas não se pode tirar a selva do Tarzan, todo o miúdo que não passa dias e noites agarrado à X-Box ou ao telemóvel, sente a pulsão de agarrar numa pedra e tentar acertar numa lagartixa ou num pardal. Não para comer, porque os bifes de lagartixa não têm a fama dos bifes de soja, e um pardal tem tantos ossos como uma sardinha tem espinhas, mas porque lhes está na massa do sangue, se bem que o sangue dos miúdos que fazem estas coisas seja líquido e vermelho e corra com força. Os da X-Box é que são uma massa informe...
Mas antes de haver X-Boxes, todo o miúdo fazia essas coisas, e não houve X-Boxes durante muito tempo. Decorre daqui que ir aos pardais foi uma actividade infantil natural e socialmente aceite, e continua hoje a sê-lo em meios rurais ou semi-urbanos. E se o é hoje, mais o era há 80 anos, quando o Sr. Anselmo era criança.
O Sr. Anselmo (na altura o Anselmito), sempre foi reconhecido entre os seu pares como um exímio atirador de fisga. Acertava num pardal a 30 passos, se não houvesse ventos laterais, coisa que nenhum dos amigos era capaz de fazer, a não ser por acidente. O Anselmito era bom naquilo, e tomou o gosto pela actividade. Ia aos pardais, armava aos tordos, armadilhava melros. Atirava com fisga, punha armadilhas e usava visco. Muitas foram as tardes a depenicar passarinhos com os amigos à volta da fogueira. Pelo seu 13º aniversário, um tio de visita da América ofereceu-lhe uma pressão-de-ar, a melhor prenda que jamais veio a ter. Com ela batia os baldios e as matas circundantes em busca de animais de pena que pudessem ser derrubados por um chumbo de 4 e meio. Foi à tropa, usou armas grandes, mas não o deixaram atirar aos pássaros. Quando regressou à vida civil comprou uma caçadeira e tirou licença para ir às perdizes. Fazia sucesso, e era a inveja dos caçadores de fim de semana, que o viam regressar com o cinto rodeado de perdizes, quando eles trariam uma ou outra, num bom dia. Mas o entusiasmo levava-o a atirar sobre outras aves. Tudo quanto voava (e algumas coisas que apenas corriam) era presa apetecível para o Sr. Anselmo, o terror dos bosques e pinhais. Cucos, maçaricos e abelharucos. Águias, abetardas e cotovias. Gansos e picanços, bravos e mansos. Tentilhões, verdilhões e galifões. Nada escapava à fúria caçadora do Sr. Anselmo. Como Hércules caçando os pássaros do lago Estínfalo, como Buffalo Bill caçando bisontes, como Elmer Fudd perseguindo o Daffy Duck, Anselmo Silva Vieira varria tudo em redor da sua residência, chegando a deslocar-se em busca de novos terrenos de caça. E foi assim que um dia, ao fim de muitos anos de actividade, uma patrulha da GNR o mandou parar e o notificou por levar no suporte traseiro da sua Zundapp uma caixa onde jazia um pilrito-de-perna-longa.
- Mas agora não posso apanhar pardais? - queixou-se o Sr. Anselmo.
- O cidadão abateu uma espécie protegida, numa zona de não-caça, na altura da nidificação. É uma contra-ordenação grave e terá que ser presente a tribunal. - esclareceu o guarda.
Anselmo Silva Vieira, na altura já com 74 anos, feitos há pouco, fez orelhas moucas da notificação e não compareceu. Dias depois apareceu-lhe em casa um jipe da GNR, desviado da sua missão de perseguir criminosos e vigiar contrabandistas, para o algemar e arrastar até ao tribunal, onde um juiz compreensivo, também ele caçador, mas numa reserva no Alentejo onde só se caçavam animais de grande porte, devidamente legalizados e marcados para abate, o multou em 150€ e o exortou a caçar apenas dentro das zonas para esse efeito destinadas, e apenas as espécies autorizadas.
- Eu já estou velhote, não vejo muito bem e não as consigo distinguir. - lamentou-se o Sr. Anselmo, apesar de a sua pontaria continuar tão certeira como sempre.
Dois anos volvidos, foi apanhado com um cadáver de um borrelho-pequeno-de-coleira. Chamaram o ICN que o algemou e espancou, pelo seu crime hediondo, e depois o arrastou até ao tribunal, onde outro juiz o condenou, pela sua reincidência, a 13 dias de prisão, que podia ser convertida em multa de 63€ por dia. Pagou e jurou nunca mais ser apanhado.
Foi. Três anos mais tarde, pela Páscoa, uma inspecção de rotina da Guarda Fiscal detectou dois tartaranhões-ruivos-dos-pauis debaixo de uma dúzia de perdizes legalmente abatidas. De novo arrastado para o tribunal onde outro juiz, ornitólogo convicto, lhe deu um sermão tão longo que o fez ansiar pelos 13 dias de prisão e o condenou, além da inevitável multa, a serviço comunitário: teria que limpar as cagadelas de gaivota nos carros da câmara municipal, e além disso ajudar num centro de recuperação de aves, instituição não governamental sem fins lucrativos, onde se cuidava de aves feridas ou doentes, se protegia o habitat e educava a população para a conservação das espécies.
Lá compareceu o Sr. Anselmo a contragosto, mas temeroso que chamassem de novo o Instituto de Conservação de Natureza, e acompanhou os biólogos e voluntários na sua missão de cuidar das aves. Ajudou a alimentá-las, verificou os ovos num ninho de escrevedeira-de-garganta-preta cuja mãe tinha sido comida por um milhafre, segurou num papa-figos para que o anilhassem, e cada tarefa o encontrava progressivamente mais calado e soturno, até que pela hora de almoço, quando lhe serviram o inevitável bife de soja, um dos voluntários lhe notou uma lágrima no canto do olho e lhe perguntou se se sentia bem. O Sr. Anselmo não respondeu, mas perante a insistência, acabou por quebrar e começar num pranto silencioso. Uma bióloga estendeu-lhe um lenço e perguntou o que se passava. Após uma pausa, lá conseguiu responder, entre soluços:
- É que, ao ver aqui todas estas aves indefesas, que nem podem voar, lembrei-me que deixei a caçadeira em casa.
- Estou farto de bagas e raízes.
Abandonou a economia recolectora, e entregou-se aos prazeres da carne. Primeiro crua, depois mal passada, e hoje em dia excentricamente confeccionada, em doses diminutas, e de tal forma que se comem hoje bifes de soja. Ah, se os Neandertais tivessem imaginado tal coisa! Como teria sido fácil caçar uns pés de soja em vez de um auroque! Mas a cozinha química é coisa recente, e as quintas de criação de perus, também, pelo que caçar foi durante muitos anos uma necessidade. E foi também um gosto e uma arte. Desde a falcoaria à caça da raposa e ao uso de furões, o Homem serviu-se das capacidades predatórias dos seus amigos animais para se tornar inimigo dos animais. A caça evoluiu de actividade de sobrevivência para passatempo e foi depois elevada à categoria de desporto, parando às portas do Comité Olímpico Internacional, que não permitiu que se atirasse sobre animaizinhos indefesos, substituindo-os por alvos estáticos e pratos voadores, em que os desportistas podiam praticar para depois mais facilmente acertar em veados imóveis e patos migratórios.
Mas o instinto está lá, e tal como se pode tirar o Tarzan da selva, mas não se pode tirar a selva do Tarzan, todo o miúdo que não passa dias e noites agarrado à X-Box ou ao telemóvel, sente a pulsão de agarrar numa pedra e tentar acertar numa lagartixa ou num pardal. Não para comer, porque os bifes de lagartixa não têm a fama dos bifes de soja, e um pardal tem tantos ossos como uma sardinha tem espinhas, mas porque lhes está na massa do sangue, se bem que o sangue dos miúdos que fazem estas coisas seja líquido e vermelho e corra com força. Os da X-Box é que são uma massa informe...
Mas antes de haver X-Boxes, todo o miúdo fazia essas coisas, e não houve X-Boxes durante muito tempo. Decorre daqui que ir aos pardais foi uma actividade infantil natural e socialmente aceite, e continua hoje a sê-lo em meios rurais ou semi-urbanos. E se o é hoje, mais o era há 80 anos, quando o Sr. Anselmo era criança.
O Sr. Anselmo (na altura o Anselmito), sempre foi reconhecido entre os seu pares como um exímio atirador de fisga. Acertava num pardal a 30 passos, se não houvesse ventos laterais, coisa que nenhum dos amigos era capaz de fazer, a não ser por acidente. O Anselmito era bom naquilo, e tomou o gosto pela actividade. Ia aos pardais, armava aos tordos, armadilhava melros. Atirava com fisga, punha armadilhas e usava visco. Muitas foram as tardes a depenicar passarinhos com os amigos à volta da fogueira. Pelo seu 13º aniversário, um tio de visita da América ofereceu-lhe uma pressão-de-ar, a melhor prenda que jamais veio a ter. Com ela batia os baldios e as matas circundantes em busca de animais de pena que pudessem ser derrubados por um chumbo de 4 e meio. Foi à tropa, usou armas grandes, mas não o deixaram atirar aos pássaros. Quando regressou à vida civil comprou uma caçadeira e tirou licença para ir às perdizes. Fazia sucesso, e era a inveja dos caçadores de fim de semana, que o viam regressar com o cinto rodeado de perdizes, quando eles trariam uma ou outra, num bom dia. Mas o entusiasmo levava-o a atirar sobre outras aves. Tudo quanto voava (e algumas coisas que apenas corriam) era presa apetecível para o Sr. Anselmo, o terror dos bosques e pinhais. Cucos, maçaricos e abelharucos. Águias, abetardas e cotovias. Gansos e picanços, bravos e mansos. Tentilhões, verdilhões e galifões. Nada escapava à fúria caçadora do Sr. Anselmo. Como Hércules caçando os pássaros do lago Estínfalo, como Buffalo Bill caçando bisontes, como Elmer Fudd perseguindo o Daffy Duck, Anselmo Silva Vieira varria tudo em redor da sua residência, chegando a deslocar-se em busca de novos terrenos de caça. E foi assim que um dia, ao fim de muitos anos de actividade, uma patrulha da GNR o mandou parar e o notificou por levar no suporte traseiro da sua Zundapp uma caixa onde jazia um pilrito-de-perna-longa.
- Mas agora não posso apanhar pardais? - queixou-se o Sr. Anselmo.
- O cidadão abateu uma espécie protegida, numa zona de não-caça, na altura da nidificação. É uma contra-ordenação grave e terá que ser presente a tribunal. - esclareceu o guarda.
Anselmo Silva Vieira, na altura já com 74 anos, feitos há pouco, fez orelhas moucas da notificação e não compareceu. Dias depois apareceu-lhe em casa um jipe da GNR, desviado da sua missão de perseguir criminosos e vigiar contrabandistas, para o algemar e arrastar até ao tribunal, onde um juiz compreensivo, também ele caçador, mas numa reserva no Alentejo onde só se caçavam animais de grande porte, devidamente legalizados e marcados para abate, o multou em 150€ e o exortou a caçar apenas dentro das zonas para esse efeito destinadas, e apenas as espécies autorizadas.
- Eu já estou velhote, não vejo muito bem e não as consigo distinguir. - lamentou-se o Sr. Anselmo, apesar de a sua pontaria continuar tão certeira como sempre.
Dois anos volvidos, foi apanhado com um cadáver de um borrelho-pequeno-de-coleira. Chamaram o ICN que o algemou e espancou, pelo seu crime hediondo, e depois o arrastou até ao tribunal, onde outro juiz o condenou, pela sua reincidência, a 13 dias de prisão, que podia ser convertida em multa de 63€ por dia. Pagou e jurou nunca mais ser apanhado.
Foi. Três anos mais tarde, pela Páscoa, uma inspecção de rotina da Guarda Fiscal detectou dois tartaranhões-ruivos-dos-pauis debaixo de uma dúzia de perdizes legalmente abatidas. De novo arrastado para o tribunal onde outro juiz, ornitólogo convicto, lhe deu um sermão tão longo que o fez ansiar pelos 13 dias de prisão e o condenou, além da inevitável multa, a serviço comunitário: teria que limpar as cagadelas de gaivota nos carros da câmara municipal, e além disso ajudar num centro de recuperação de aves, instituição não governamental sem fins lucrativos, onde se cuidava de aves feridas ou doentes, se protegia o habitat e educava a população para a conservação das espécies.
Lá compareceu o Sr. Anselmo a contragosto, mas temeroso que chamassem de novo o Instituto de Conservação de Natureza, e acompanhou os biólogos e voluntários na sua missão de cuidar das aves. Ajudou a alimentá-las, verificou os ovos num ninho de escrevedeira-de-garganta-preta cuja mãe tinha sido comida por um milhafre, segurou num papa-figos para que o anilhassem, e cada tarefa o encontrava progressivamente mais calado e soturno, até que pela hora de almoço, quando lhe serviram o inevitável bife de soja, um dos voluntários lhe notou uma lágrima no canto do olho e lhe perguntou se se sentia bem. O Sr. Anselmo não respondeu, mas perante a insistência, acabou por quebrar e começar num pranto silencioso. Uma bióloga estendeu-lhe um lenço e perguntou o que se passava. Após uma pausa, lá conseguiu responder, entre soluços:
- É que, ao ver aqui todas estas aves indefesas, que nem podem voar, lembrei-me que deixei a caçadeira em casa.
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