Prova de aflição

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!


A primeira coisa a que temos que prestar atenção é que este pescador é um vulgar pescador, igual a tantos outros, igual a todos os outros. Contudo, a sua barca é especial: é bela. É até "tão bela, ó pescador", o que a diferencia das demais barcas, e portanto dos demais pescadores. Temos então que desde o início fica claro que o tema do poema não é o pescador, mas a barca. O pescador não passa de um instrumento necessário à operação da barca, a qual, por si só, é inútil. A preocupação do autor é com a nave: tem receio que se perca, que naufrague e fique irrecuperável, o que seria uma perda irreparável, por ser tão bela. É evidente a alusão a John Keats e à sua máxima "truth is beauty, beauty truth", e aqui se evidencia a preocupação do poeta com a verdade, aquela que jaz para além das aparências. Ao velar-se o céu, recolhe-se a vela, e esta contradição aparente justifica-se pelas artes de marear, as quais ditam que em caso de tempestade (iminente, pela rapidez com que as estrelas desaparecem e o céu se vela), se deva recolher o velame para que a embarcação não fique à mercê da tormenta. É aqui que se ilustra a inutilidade do pescador, o qual torna óbvia a sua estupidez e consequente prescindibilidade ao insistir em pescar apesar da situação adversa, comprometendo assim a bela barca. Por mais cautela que ponha nas artes de pesca, já estão perdidos remo e vela, ou seja, a propulsão e direcção. Nesta altura já a barca voga à mercê dos elementos, e sobra apenas no firmamento uma réstia de esperança, a última estrela, a estrela do norte, a estrela que conduziu os reis magos e que poderia também conduzir o pescador à segurança, se este não fosse tão estúpido que não tivesse perdido remo e vela, o que atesta a sua inexperiência. Neste momento chega a ajuda na forma de sereia. A sereia é a voz que se ouve no fim do mar, o inverso do gigante Adamastor, o qual prenuncia dificuldades e desgraças. Ao invés, a sereia é uma figura gentil, de canto melodioso e atractivo, que oferece ao incauto pescador uma saída airosa e feliz, alternativa a uma agonia de morte por afogamento nos confins de um mar tempestuoso, consequência da sua inexperiência e estupidez, como atrás demonstrado. Uma vez mais, a verdade a que Keats se referia subjaz à referência à sereia, vista aqui não como a criatura torpe e falsa qua atraía Ulisses, mas como a criatura gentil de Hans Christian Andersen, disposta a sacrificar a sua essência por uma esperança de humanidade. E o  vil pescador, na sua ganância de lucro, lança-lhe a rede, tenta capturá-la, pois não passa, afinal, de um pescador.
É só no fim do poema que o poeta se demarca desta posição. Aqui se distingue a obra do autor, a personagem do seu criador. "Foge dela, ó pescador" é a recomendação final, mas distante. O poeta pretende que a barca, na sua pureza de beleza e verdade, se separe finalmente da figura tenebrosa que a conduziu à sua perdição. O pescador deverá afastar-se da beleza e verdade, e regressar a nado cumprindo o seu destino de morte por afogamento, comum a tantos outros pescadores, vis como este.
A barca, bela e vera, seguirá para um destino melodioso de eternidade e júbilo.

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