Byblos



   Há pessoas cujo papel na vida é lidar com papel. Há burocratas, encadernadores, tipógrafos, livreiros, alfarrabistas, fiscais de EMEL, ardinas, e jornalistas. Filomena era leitora. Lia apaixonadamente, quase compulsivamente, todo o tipo de livro que lhe vinha às mãos. Romances, novelas, ensaios, revistas, dramas, crónicas... De tudo gostava, tudo lia com prazer e sem cessar, mas do que mais gostava era dos autores consagrados. Dostoyevsky, Samuel Beckett, Voltaire, Cícero, Arthur C. Clarke, apreciava todos os géneros, nenhum lhe parecia menor ou menos interessante, e em todos achava motivo de prazer. Comprou livros até encher a casa, leu-os e releu-os. Visitou bibliotecas e requisitou os livros que pôde. Leu-os, devolveu-os e requisitou outros. Leu-os, devolveu-os e mudou de biblioteca. Habituou-se a ler no sossego e semi-escuridão dos esconsos da biblioteca. Arruinou os olhos. Tentou lentes de contacto, mas não eram suficientemente eficazes para tanta leitura. Comprou uns óculos.
   Coleridge, Pessoa, Camus, Ramalho Ortigão e D. H. Lawrence. Trocou de lentes, aquelas já não serviam.
   Shakespeare, Terêncio, Herman Hesse, Ibsen, Asimov... Filomena já quase não saía da biblioteca, se não para mudar para outra.
   F. Scott Fitzgerald, Victor Hugo, Emilio Salgari, Lao Tzu, Agatha Christie. Encontrou uma biblioteca que tinha máquinas de vender sumos, águas e sandes. Deixou de ir a casa.
    Camões, Molière, T. S. Elliot, Walt Disney, Ursula K. Le Guin... Podia acabar o mundo, Filomena morreria feliz.
    Platão, Júlio Verne, Júlio Dinis, Milan Kundera... O mundo acabou, Filomena não deu por isso. Talvez fosse uma guerra nuclear, uma epidemia ou um ataque de extra-terrestres. Uma catástrofe natural, um asteroide ou o aquecimento global.
    Umberto Eco, Pablo Neruda, Descartes, Kipling e Enid Blyton. Filomena era a única pessoa do mundo, enterrada nos confins da biblioteca sobrevivera a toda a Humanidade. Tinha ao seu dispôr todas as bibliotecas do mundo, todos os livros que não lera, dos mais secretos aos mais preciosos. Uma escolha quase infinita, todo o tempo do mundo.
    Foi então que por acidente partiu os óculos...

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