Fonte da Juventude

    
Não quero saber do que dizem: não há nada de romântico ou glorioso na velhice. Eu sei. Cheguei àquela altura em que não me apetece experimentar nada de novo e encontro defeitos na maioria das coisas velhas. Além disso doem-me as articulações, cresce-me a barriga sem motivo aparente e adormeço no sofá a ver televisão. Como eu disse, nada disto é glorioso ou romântico. Não me sinto mais sábio ou em paz comigo mesmo, e cada vez tenho menos paciência para me forçar a estar em paz com os outros. Nada romântico. Nada glorioso. E é por isso que decidi que alguma coisa deve ser feita a respeito disto. Afinal, com o aumento generalizado da esperança de vida afiguram-se-me ainda muitos anos de resmunguice, e francamente, não me sinto com paciência para aturar parvoíces durante mais 30 ou 40 anos. Contemplei o suicídio, mas parece-me um bocado irreversível e sobretudo doloroso, e afinal porque havia eu de me suicidar? Não fiz nada de mal. Todos os outros é que são uns chatos. Eles que se suicidem! Optei por outra via: vou rejuvenescer. Não me refiro a operações plásticas, pretendo apenas actualizar o meu visual e adoptar algumas estratégias e filosofias que me façam parecer mais jovem e me levem, por consequência, a sentir mais jovem.
A primeira coisa que fiz foi comprar um boné e virar a pala para trás. Ainda considerei pôr uma fisga no bolso das calças, mas achei que era demasiado. Não me senti mais novo. Aliás, não senti coisa nenhuma além de calor na cabeça e a pala a roçar-me nas costas, mas suportei essas adversidades estoicamente em prol da minha nova juventude. Olhei em volta com ar de gozo para mostrar ao público em geral como era modernaço e jovem, mas isso fez-me reparar que já ninguém usa a pala do boné para proteger o pescoço de dentadas de vampiros. Fiz-me forte, e deixei-a estar, mas baixei as calças até deixar metade das cuecas à mostra (a metade de cima), consciente de que agora é que seria um jovem. Por antecipação até já me estava a sentir um bocado menos embirrento. Infelizmente a embirração depressa regressou, redobrada, pois se tornou particularmente dificil caminhar com as calças pelo meio das pernas, além de que era um equilíbrio bastante precário, o ponto em que as cuecas ficavam um bocado à mostra e as calças me caíam até aos tornozelos. Enfim, o objectivo era ser moderno, e não é possível sê-lo com umas calças inteiras, mesmo que estejam pelos joelhos, por isso agarrei num prego, fiz-lhes um furo e depois rasguei-as. Foi como se me tirassem 10 anos de cima! Era já praticamente um teenager, mas um teenager ainda um bocado insatisfeito (o que não se adequa nada aos teenagers) e aborrecido com o mundo em geral, para o que contribuía de maneira proeminente a corrente de ar que se gerava entre os rasgões nas calças, cirurgicamente distribuídos pelos lugares da moda, e o rego do cu, metade à mostra, para gáudio dos transeuntes que observavam a minha marcha trôpega e aos tropeções enquanto puxava as calças para o tal ponto de equilíbrio do meio-rego. Admiravam sem dúvida a minha juventude recém reencontrada. Observei outros jovens e eles observaram-me a mim também, mutuamente interessados e curiosos. Compreendi que me faltavam ainda alguns passos até que a minha juventude exterior repassasse para o meu íntimo, e pudesse então aproveitar os anos que me faltavam em harmonia com o novo mundo. O primeiro passo era, obviamente, o penteado, que era ainda demasiado clássico por debaixo do meu boné com publicidade a uma marca da berra. Depois de observar alguns exemplares exemplificativos, optei por um corte de cabelo não muito radical: mandei rapar metade do crânio e pintar a outra metade de um fúcsia metalizado, que depois deveria pentear por cima do lado rapado, para fingir que tinha cabelo no sítio onde tinha acabado de o mandar rapar. Astucioso. Infelizmente esqueci-me que ainda era jovem há pouco tempo, e na minha velhice usava o cabelo curto, pelo que acabei com metade da cabeça colorida e a outra descoberta. Comecei a sentir-me um bocado como a Pantera Cor-de-rosa num dia de azar. Enfim, haveria de crescer, e entretanto tinha o boné virado para trás. Por falar em boné virado para trás, adornei-o com uns óculos escuros de uma marca caríssima, que coloquei estrategicamente por cima da pala (para trás) onde evidentemente não tinham utilidade nenhuma, a não ser aquela que importava: ter estilo. Ou por outra: ser cool. Agora que era jovem, não podia esquecer-me de usar uma linguagem adequada, e nada mais adequado do que ser cool. Comecei a andar pelas ruas a falar às pessoas de um modo simpático, mas que evidenciasse a minha (agora já aparente) juventude:
- Yo, bacano, tasse? Ya dread, tasse cool, bro!
Tanta simpatia ia-me grangeando uns tabefes de um taxista que já tinha olhado para mim de lado, e foi com dificuldade que me consegui escapulir, dificuldade a que não foram alheias as calças pelo meio das pernas e as dores nas articulações, que apesar de todo este esforço teimavam em não desaparecer. Pelo menos já me estava a sentir um pouco mais glorioso, se não mesmo romântico. Tanto estilo, ou coolness, já devia estar quase a dar os seus frutos. A qualquer momento teria uma dama ou uma babe. Quiçá ambas.
Contudo a minha metamorfose não estava ainda completa. Não podia ser jovem sem ter uma tatuagem ou duas. Comecei a ponderar a clássica borboleta no ombro ou golfinho no tornozelo, mas tamanha discrição, embora moderna, não era satisfatória, além de ser demasiado efeminada até para um jovem do séc. XXI (ou 21, que os jovens não gostam de coisas complicadas). Teria que ser algo no pescoço, ou a ocupar um braço inteiro, até ao fígado. Comecei pelo pescoço. Fui a uma loja da especialidade onde me mostraram um catálogo completíssimo de desenhos intrincados, e acabei por deixar que o Michelangelo residente me rabiscasse com uns gatafunhos ininteligíveis que me ocuparam metade do pescoço (a metade oposta à minha futura guedelha cor-de-rosa). Garantiu-me que me faria entrar em contacto com o meu chakra interior. Já que estava em modo de automutilação (outra tendência da moda) aproveitei e pus um piercing. A escolha é vasta e difícil, desde o simples espeto no sobrolho até à mutilação genital. Fiquei-me por um meio termo e pus um arganel no nariz. Só um, nada de exageros. Saí de lá sentindo-me como um boi de chega, mas não se pode esperar atingir a mudança interior sem alguns sacrifícios. A verdade é que as pessoas olhavam já para mim com outros olhos. Onde dantes notava algum incómodo pela minha semi-provecta idade e o mau estar que a acompanhava, agora via uma evidente e inegável repulsa. Nada disto afectou a minha maneira de sentir. Continuava a sentir-me enfastiado e implicativo.
Passei aos hobbies. A primeira coisa que fiz foi fanar uma lata de spray e fazer uns graffittis. Parece que é uma forma de arte. Escolhi uma parede branquinha, acabada de pintar, e borrifei uns gatafunhos. Supuz que o proprietário da vivenda fosse ficar satisfeito e reconhecido pela beneficiação. Aquilo que tinha sido apenas um muro, era agora um quadro valiosíssimo. Ah, o poder da arte! Depois pus um skate debaixo de um braço e uma prancha de surf debaixo do outro e agora aqui estou, encostado a uma parede dos Jerónimos, à espera de me sentir entusiástico e irreverente. Já não deve tardar...

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