Sôdade
Uma das profissões mais velhas do mundo, é a de assassino. Mais do que uma profissão, torna-se por vezes um hábito, como aconteceu ao homem que era conhecido no submundo tenebroso dos homicidas e raptores como Ratinho, pois gostava de se considerar enganosamente fofinho. Contudo, Ratinho obedecia ao estereótipo do assassino profissional: façanhudo, irascível, de olhar frio e maldoso, de poucas conversas, mais parecia uma ratazana do que um ratinho, o que não alterava a percepção que tinha de si próprio.
Estava entre dois trabalhos, aguardando alguma comunicação ou contacto de algum dos seus empregadores ocasionais, e por força do hábito, entretinha-se a matar o tempo. Começou por jogar ao mata com as crianças da vizinhança, mas o seu aspecto pouco recomendável fez com que os pais as chamassem todas para casa para lanchar, deixando-o só. Foi então matar a fome. Depois matou a sede. Como isso não apaziguasse a sua sede de matar, decidiu matar saudades. Isso foi mais difícil, pois Ratinho não tinha saudades que pudessem ser mortas. Nele não vivia a saudade, nem sequer a nostalgia. Saíu para a rua, procurando-as.
Caminhou encostado às paredes, com o seu característico olhar desconfiado, sobrolho carregado por baixo do chapéu de aba larga, até que viu, sentado num banco de jardim, um velhote apoiado na sua bengala, com ar pensativo. Aproximou-se sorrateiramente e sentou-se ao seu lado. O velho não se mexeu.
- Boa tarde. - disse Ratinho.
O velho não respondeu. Ratinho tentou meter conversa:
- Tenho saudades do tempo em que havia aqui um jardim cheio de flores coloridas.
- Saudades? - perguntou o velho. - Sabes lá o que são saudades até não poderes ver as cores.
E Ratinho apercebeu-se que a bengala era branca. Tentou outra abordagem.
- E dos sinos dos eléctricos e do riso das crianças que aqui brincavam. Tenho saudades.
- Sabes lá o que são saudades até deixares de ouvir.
E Ratinho notou que o velho usava aparelhos auditivos em ambos os ouvidos.
- E também tenho saudades das castanhas assadas e dos couratos que o quiosque vendia debaixo do velho plátano.
- Sabes lá o que são saudades até não poderes comer!
E Ratinho reparou que o velho não tinha dentes. Mas não desistiu:
- Mas do que tenho mais saudades é dos amigos que tinha e que não vejo há tantos anos.
- Sabes lá o que são saudades até que todos os teus amigos tenham falecido e a tua família esteja também morta ou emigrada no outro lado do mundo!
E quando Ratinho estava a ver que para matar saudades teria que matar o velho, este acrescentou:
- Saudades é o melhor que há. São memórias onde tudo é perfeito e nunca nos desilude. Nas saudades não há falhas nem momentos menos bons. Tenho saudades de ter saudades.
Então Ratinho levantou-se e foi fazer a sesta.
Estava entre dois trabalhos, aguardando alguma comunicação ou contacto de algum dos seus empregadores ocasionais, e por força do hábito, entretinha-se a matar o tempo. Começou por jogar ao mata com as crianças da vizinhança, mas o seu aspecto pouco recomendável fez com que os pais as chamassem todas para casa para lanchar, deixando-o só. Foi então matar a fome. Depois matou a sede. Como isso não apaziguasse a sua sede de matar, decidiu matar saudades. Isso foi mais difícil, pois Ratinho não tinha saudades que pudessem ser mortas. Nele não vivia a saudade, nem sequer a nostalgia. Saíu para a rua, procurando-as.
Caminhou encostado às paredes, com o seu característico olhar desconfiado, sobrolho carregado por baixo do chapéu de aba larga, até que viu, sentado num banco de jardim, um velhote apoiado na sua bengala, com ar pensativo. Aproximou-se sorrateiramente e sentou-se ao seu lado. O velho não se mexeu.
- Boa tarde. - disse Ratinho.
O velho não respondeu. Ratinho tentou meter conversa:
- Tenho saudades do tempo em que havia aqui um jardim cheio de flores coloridas.
- Saudades? - perguntou o velho. - Sabes lá o que são saudades até não poderes ver as cores.
E Ratinho apercebeu-se que a bengala era branca. Tentou outra abordagem.
- E dos sinos dos eléctricos e do riso das crianças que aqui brincavam. Tenho saudades.
- Sabes lá o que são saudades até deixares de ouvir.
E Ratinho notou que o velho usava aparelhos auditivos em ambos os ouvidos.
- E também tenho saudades das castanhas assadas e dos couratos que o quiosque vendia debaixo do velho plátano.
- Sabes lá o que são saudades até não poderes comer!
E Ratinho reparou que o velho não tinha dentes. Mas não desistiu:
- Mas do que tenho mais saudades é dos amigos que tinha e que não vejo há tantos anos.
- Sabes lá o que são saudades até que todos os teus amigos tenham falecido e a tua família esteja também morta ou emigrada no outro lado do mundo!
E quando Ratinho estava a ver que para matar saudades teria que matar o velho, este acrescentou:
- Saudades é o melhor que há. São memórias onde tudo é perfeito e nunca nos desilude. Nas saudades não há falhas nem momentos menos bons. Tenho saudades de ter saudades.
Então Ratinho levantou-se e foi fazer a sesta.
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