A ponte

   Os pirilampos e assobios do Skoda criaram um vácuo na praça da portagem, que ainda há 30 segundos estava cheia. Nada infunde mais terror a um automobilista do que um carro da Brigada de Trânsito. Sem sequer abrandar na portagem, o carro precipitou-se para o tabuleiro da ponte e ainda antes do primeiro pilar bloqueou a faixa da direita. Ambos os guardas saíram precipitadamente e cercaram um indivíduo que seguia a pé pelo estreito corredor pedonal de emergência. Vestia uma camisola azul e umas calças de ganga, com uma chave de fendas e outra de boca enfiadas no bolso de trás, e não parecia sofrer de vertigens.
   - O senhor não pode estar aqui. - disse um dos polícias - Faça favor entre na viatura e venha connosco.
   - Porque é que não posso estar aqui? A ponte é minha, posso ir onde quiser.
   - A ponte é sua? Que significa isso?
   - Aquilo que acabei de dizer: a ponte é minha, posso estar onde quiser.
   - A ponte não é sua, é do estado, e o senhor não pode estar aqui.
   - É minha, sim senhor. Comprei-a. Os senhores é que não podem estar aqui sem minha autorização. E estes carros todos também não. Mandem-nos embora, por favor.
   Os polícias olharam um para o outro com um olhar que significava " sai-nos cada maluco", e prepararam-se para obrigar o homem a entrar no carro. Antes que iniciassem o procedimento o homem explicou:
   - Comprei a ponte num leilão das finanças. Tenho aqui a escritura, podem ver.
   Estendeu-lhes um papel e o mais graduado olhou para ele com atenção.
   - Parece em ordem, mas não pode ter comprado a ponte. Ó Costa, fale aí para a central e veja o que eles têm a dizer acerca disto.
   O Costa entrou no carro e ouviram-no chamar a central.
   Entretanto, na faixa da esquerda, havia uma fila interminável, com automóveis que passavam devagar e ainda abrandavam para tentar compreender o que se passava. O Costa voltou.
   - Meu sargento, da central confirmam que está tudo em ordem. A ponte foi mesmo vendida.
   - Vendida?
   - Em hasta pública, arrematada online por carta fechada.
   - Eu bem vos disse. - recriminou o homem das calças de ganga. - Agora se fizerem favor saiam da minha ponte e tirem daqui estas pessoas, que eu tenho o que fazer.
   - Mas o que vai o senhor fazer aqui?  - perguntou o Costa.
   - Vou desmontar a ponte, para a levar para casa. Não me serve para nada aqui.
   - Ó homem, você não pode levar daqui a ponte, que faz cá muita falta. Não vê toda esta gente a atravessar de um lado para o outro? Têm que ir trabalhar do outro lado do rio.
   - Que trabalhem no lado onde vivem. Ou que se mudem para o lado onde trabalham. Ou que comprem a sua própria ponte. Esta é minha e vou levá-la daqui.
   O sargento abanava a cabeça, incapaz de dizer coisa alguma, mas o Costa tentava argumentar:
   - Mas não pode pedir a estes milhares de pessoas que alterem assim a sua vida de um dia para o outro.
   - Não é de um dia para o outro, ainda vou demorar algum tempo a desmontá-la. É uma ponte grande. Além disso não gosto da cor, parece que está ferrugenta. Vou pintá-la de azul-bebé. Isso vai demorar algum tempo, e podem continuar a usá-la enquanto o faço. Não sou picuinhas. Só não quero que me atrapalhem.
   E dando o assunto por encerrado tirou do bolso a chave de bocas pôs-se ao trabalho de desmontar a ponte sobre o Tejo. Os polícias, vencidos pela lei, entraram no Skoda, desimpediram a via, restabelecendo a circulação, e dirigiram-se à esquadra para verificar junto do gabinete jurídico se a ponte podia mesmo ser vendida, embora soubessem de antemão que a central já o tinha feito, ou não teria dado aquela resposta.
   Os utentes da ponte sobre o Tejo não se aperceberam de nada. Ninguém reparou no indivíduo solitário que com a sua chave de bocas ia retirando parafusos e rebites, e nem mesmo quando a ponte começou a ser pintada de azul-bebé alguém desconfiou do que se passava. Supuseram apenas que se tratava de obras de beneficiação e que estavam a fazer novas marcações no pavimento.
   No dia seguinte o homem dispensou os portageiros.
   Na terça-feira apareceu de scooter e levou alguns dos rails de protecção.
   Na sexta-feira foi feriado, não apareceu, mas no sábado trouxe um alicate e começou a desmontar os cabos que seguravam os pilares.
   Entretanto as obras já não passavam despercebidas e foi até notícia do telejornal o facto de a ponte ter sido vendida, mas como não era um banco, ninguém lhe deu grande importância. Contudo, o tráfego diminuiu, com o receio de que a ponte já não fosse segura, agora que lhe faltavam já uns pedaços visíveis. Isto trouxe várias consequências: o trânsito na ponte Vasco da Gama aumentou sensivelmente, a transtejo foi buscar à reforma os cacilheiros que transportavam carros, as praias da Linha encheram-se de gente, na proporção em que as da Costa se esvaziaram. E embora tudo isto trouxesse inconvenientes às gentes da margem sul, de uma forma geral as pessoas não se insurgiam contra o homem das calças de ganga, que continuava calmamente a sua tarefa de desmontar a ponte, uma vez que todos concordavam que se a ponte era dele, podia fazer com ela o que lhe apetecesse. Se fosse sua, cada um deles também tinha uma ideia definida do que lhe faria.
   Na segunda feira tirou o piso da faixa da esquerda, deixou de se poder circular lá.
   Na quarta desmontou o pilar norte e cessou por completo o trânsito, mas por essa altura já as pessoas se tinham acomodado e ninguém resmungou. Afinal a população tinha anos de prática de inconveniências a que se acomodavam rapidamente. Sucessivos aumentos de impostos, desfalques em bancos e derrapagens das obras públicas tinham insensibilizado um povo inteiro. Não era a mera ausência de uma ponte que os faria sair da sua modorra. Guardavam a sua justificada fúria para o próximo escândalo futebolístico.
   No sábado de manhã o homem apareceu com uma carrinha de caixa aberta e levou o tabuleiro.
   Voltou no domingo para levar os últimos pedaços e limpar tudo, porque era um cidadão asseado e respeitador do meio ambiente. Deixou apenas as sapatas de cimento no meio do rio, para que pudessem pôr lá umas roulottes a vender bifanas aos passageiros dos cacilheiros, que eram agora em número significativo e precisavam de comer.
   Foi só um mês mais tarde que a comunicação social se lembrou de colocar a questão: afinal para onde tinha ido a ponte? Contactaram o senhor, que sem fazer segredo explicou que a tinha oferecido ao sobrinho, que fizera anos na semana anterior, e que agora se iam entreter aos fins de semana a montá-la na sua aldeia, no concelho de Ourique.

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