Another brick off the wall


   Nunca fora intelectualmente dotado. Ou talvez nunca se tivesse esforçado. Pelo menos os resultados escolares não foram brilhantes, e como sabemos é por aí que se mede a esperteza de cada um, portanto nunca fora intelectualmente dotado. Evitou as profissões de secretária e acabou pedreiro. Não que talhasse granito ou cortasse mármore; assentava tijolo. Contudo ara um bom assentador de tijolo. Era exímio com a colher de pedreiro, misturava a massa nas proporções exactas e era um ás no uso da bolha de nível e no fio de prumo.

   Um dia fez um muro. Não havia muro mais direito, ou com melhores alicerces. Todos os tijolos perfeitamente alinhados, cuidadosamente espaçados com cimento da melhor qualidade, e com o melhor tijolo burro. Era o orgulho e a inveja da vizinhança, porque o muro tinha sido encomendado para dividir duas propriedades. Nada de guerras de partilhas, ou questiúnculas antigas. Apenas dois vizinhos que concordaram em delimitar os respectivas quintais. Uma questão de privacidade, não de propriedade. E logo todos os outros vizinhos concordaram que o muro era uma excelente ideia e todos eles eram privados e tinham direito à sua intimidade, que não devia ser devassada por olhares indiscretos. E logo se fizeram outros muros e rapidamente a vizinhança se tornou um labirinto de muros, cercas e portões. Cada um vivia agora feliz na sua privacidade e intimidade, rodeado pelas suas famílias e visitado apenas pelos amigos, que apareciam apenas quando convidados, e pelas famílias, em ocasiões festivas e cuidadosamente pré-determinadas, porque na maioria das vezes essas festas eram passadas em restaurantes ou outros estabelecimentos de convívio.
   Imune a estas considerações estava o muro. Não sentia inveja dos outros muros nem curiosidade pelas vidas dos vizinhos, nem orgulho na sua perfeição. Ali estava e era tudo.
   Um dia um dos tijolos aborreceu-se. Sem saber porquê, acordou aborrecido, e sem pensar duas vezes, levantou-se foi embora. Os tijolos são conhecidos por não pensarem muito, e este fez jus à sua reputação. Não pensou duas vezes, nem sequer uma. Aborreceu-se e foi embora.
    Para alguém pouco entendido nesta coisa de muros, podia parecer que tinha caído do seu lugar, mas na realidade foi apenas embora. Os outros tijolos não ligaram. Não que tivessem mais em que pensar, pois não pensam muito, mas também não precisavam de pensar na ausência daquele tijolo em particular. A verdade é que ficou ali um buraco. O muro não se afligiu, os vizinhos de um lado e do outro não deram por nada, mas o filho do vizinho da esquerda gostava de jogar à bola contra o muro, e teve tanto azar que conseguiu atirá-la através do buraco. Espreitou por ele para a procurar e viu que a filha da vizinha já estava com ela na mão, meio atordoada com aquele objecto estranho. Falou-lhe através do buraco e pediu-lhe que lhe devolvesse a bola atirando-a por cima da parede. Ela assim fez, e quando o miúdo se aproximou de novo para lhe agradecer, notou que a casa do vizinho tinha piscina. Contudo, na sua havia um baloiço. Rapidamente convenceu a catraia a vir empurrá-lo, depois o inverso, no dia seguinte estavam os dois na piscina, dois dias depois os pais beberam uma cerveja um com o outro, e na semana seguinte as duas famílias fizeram um churrasco. Dali a quinze dias, já as mães arranjavam as unhas uma da outra e os garotos jogavam à bola na rua com outros miúdos da vizinhança.
   E um facto curioso é que em todos os muros faltava um tijolo ou outro.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O Fado da Desgraçadinha

Libertad O Muerte

O Insurrecto