Possuído
Alguma vez vos contei acerca daquela vez em que me transformei num coelho? Não? Não é de estranhar, não é coisa de que me gabe. Pois é, um coelho. Não acreditam? Perguntem ao ouriço cacheiro. Ele viu tudo.
Vinha do trabalho já de noite quando tive um furo. Muito aborrecido. Fiquei sem saber se devia mudar a roda ou chamar a assistência em viagem. Ainda por cima numa estrada deserta, longe de qualquer povoação, e sem iluminação. Enfim, não exactamente sem qualquer iluminação, a lua estava cheia, o luar iluminava claramente a roda do carro. Infelizmente, não a roda que estava furada, essa estava do outro lado, na sombra. Fiquei fora de mim! E foi nessa altura, enquanto estava fora de mim, que o coelho entrou. Assim, sem aviso. Fiquei fora de mim, enquanto o coelho tomava posse de mim. Senti-me deveras estranho, assim acoelhado. E assustado. Os coelhos não são criaturas particularmente corajosas, e numa noite escura, no meio do campo, menos ainda.
Não sei muito sobre coelhos, além do que li nas histórias. Há o da Alice, sempre apressado, ou assustado, não se percebe. Há o da tartaruga, mas não é bem um coelho, é uma lebre. Há o Tambor, mas é meio parvo. E há o Bugs Bunny. Mas não tenho a certeza que o Bugs Bunny seja o estereótipo do coelho. Pelo menos eu não me senti nada como o Bugs Bunny. Senti-me mais do tipo coelhinho assustado, a franzir o narizinho e a abanar as orelhas, a pressentir o perigo.
O perigo! Uma estrada deserta no meio de nenhures pode ser fatal para um coelho assustado. As luzes de um carro a encandear, e lá se vai o coelho. Uma raposa finória a aproximar-se de mansinho, e lá se vai o coelho. Uma coruja silenciosa e lá se vai o coelho. Uma cobra, um saca-rabos, um cão vadio... O meu narizinho e as minhas orelhinhas não paravam.
Meti-me no carro e vim embora, mesmo com o pneu furado. Com medo de ter algum acidente, ou que a polícia me mandasse parar. Com medo de parar nos sinais de stop, e ser vítima de car jacking.
Cheguei finalmente a casa, olhei em volta a farejar por assaltantes ou violadores, e corri a enfiar-me em casa, com o rabinho branco aos pulinhos e as orelhinhas deitadas para trás. Uma tentação para violadores, certamente, mas na rua não ficaria. Fechei-me em casa e enfiei-me na cama, com os cobertores até às orelhas. Deixei o narizinho de fora, rosado e a farejar. Tive suores frios a noite toda, e de manhã não me levantei, com medo de ir para o emprego. Depois levantei-me, com medo de ser despedido. Saí cuidadosamente da cama e fui comer uma cenoura. Liguei para o emprego a dizer que estava doente, a vozinha trémula, mas tive receio de ser apanhado na mentira. Comi uma folha de alface e preparei-me para ir trabalhar, na esperança que ninguém percebesse que eu era um coelho. Abri cuidadosamente a porta, espreitei cuidadosamente para fora e escutei cuidadosamente à procura de perigos desconhecidos. Ia sair quando o vizinho apareceu para ir passear o cão.
Voltei para dentro, tremente e receoso, e fiz três caganitas sem querer. Agarrei noutra cenoura e sentei-me em frente da Tv a ver as notícias, à espera de ganhar coragem. Má ideia. A situação económica e financeira fez-me temer pelas minhas economias, a situação dos hospitais públicos fez-me recear pela minha saúde, os conflitos étnico-raciais fizeram-me recear pela minha segurança.
Comi outra cenoura. As cenouras estavam a acabar, o que me afligiu sobremaneira. Também me afligiu a possibilidade de esta situação se tornar permanente e me impedir de levar uma vida normal, no futuro. Voltei para a cama e meti-me debaixo dos lençóis. Deixei o narizinho de fora e as orelhinhas atentas, à cata de ruídos suspeitos. Pouco tempo depois deu-me fome. Levantei-me para ir comer outra cenoura, mas assustei-me com a luz do frigorífico e voltei aos pulinhos para o quarto.
Foi nesta altura que o coelho saiu de mim: estava farto de tanta mariquice.
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