Se a tanto o ajudar o engenho e arte
O povo da coruja era orgulhoso. Orgulhoso da sua cultura, da sua civilização. Foi um duro golpe nesse orgulho serem conquistados pelo senhor dos mares. Um golpe dado pelo machado de duas lâminas de Minos, rei de Creta, cujas galeras puseram fim à pirataria de Atenas. Talvez a deusa padroeira tivesse tomado o seu nome da cidade; talvez a cidade tivesse honrado a deusa tomando o seu nome; em qualquer dos casos, o totem da cidade, em que estava representada a ave da sabedoria, como alusão à deusa, fazia parte do espólio que Minos levou consigo para Creta, assegurando assim a vassalagem de Atenas. E isto era um rude golpe no orgulho dos aqueus. Tão rude como a exigência de Minos de 14 jovens de sangue real. Era profissão de risco ser príncipe, nesta altura.
Havia contudo um príncipe de Atenas que não se preocupava com este risco. Era um príncipe artesão, artífice e artista, conceituado e estimado por todos, conhecido pelo seu engenho e artifício, e o seu nome era Dédalo.
A certa altura pediu sua irmã a Dédalo que tomasse como aprendiz o seu sobrinho Perdix. Embora avesso a esta função, Dédalo foi incapaz de a recusar a sua irmã, e apesar do desinteresse do rapaz, consentiu em o instruir nas diversas artes e ciências em que era mestre. Assim foi que um dia, enquanto coloria potes e moldava o barro, Dédalo foi fazendo notar como era difícil trabalhá-lo de forma a que não sobrassem ângulos ou arestas, explicando como era difícil andar em volta do vaso para o moldar convenientemente. O que seria bom era que a mesa rodasse, e não o artífice. Perdix ouvia displicentemente, com a falta de entusiasmo com que escutava tudo quanto o mestre dizia e este deixou-o no dia seguinte na oficina, enquanto viajava para fora da cidade para investigar umas pedras de que tinha ouvido falar, e que, supostamente, poderiam produzir um pigmento de um tom amarelo que permitiria colorir vasos e estátuas de uma cor mais viva. Ao regressar, deparou-se com a oficina completamente desarrumada, virada do avesso, mas em cujo centro havia uma mesa redonda, feita a partir de uma roda de carroça, que girava sobre um eixo. Na base desse eixo, outra roda era girada com os pés, permitindo que girassem sincronamente. Sentado num banco, Perdix modelava rápida e perfeitamente o barro, produzindo um vaso perfeitamente circular.
Dédalo admoestou severamente o rapaz e castigou-o pelo seu uso não autorizado da oficina e pelo estrago e desarrumação que lhe tinha causado, mas admirou secretamente o engenho e habilidade do moço. Quando se soube do castigo aplicado a Perdix, os habitantes da cidade atribuiram-no a inveja do mestre, que sabiam orgulhoso. Desconheciam que o seu orgulho o tornava imune às críticas e comentários dos conterrâneos, achando-se superior a elas, mas até Dédalo se surpreendeu ao notar que se sentia incomodado quando lhe faziam notar que as suas últimas criações estavam ainda mais perfeitas do que era habitual, e perguntavam jocosamente quanta da mão do aprendiz estava em determinada estátua ou instrumento.
Um dia, enquanto percorriam a praia observando as gaivotas e o modo como aproveitavam o vento para planar sem esforço, Perdix apanhou da areia a mandíbula de um peixe grande. Apenas o osso restava, e ao passar os dentes aguçados pela mão fez um corte profundo, que Dédalo se apressou a ligar, enquanto fazia notar ao aprendiz como o corte era preciso e linear. Na oficina o artífice reproduziu os dentes numa folha de bronze, e perante a curiosidade de Perdix, passou a folha dentada sobre um bloco de madeira, demonstrando como a cortava facilmente. Perdix não ficou impressionado e argumentou que podia facilmente cortar a amadeira com um machado. O mestre fez notar como o corte era regular e como era fácil controlar o seu comprimento e a profundidade. Nada que um bom carpinteiro não fizesse com o machado, teimou o aprendiz, desvalorizando a invenção do mestre, desinteressado das aprendizagens, como habitualmente.
No dia seguinte Dédalo foi chamado à acrópole, onde o rei lhe tinha pedido que desenhasse um templo dedicado à deusa da coruja, e ao regressar, ao final do dia, entrou numa taberna para tomar um copo de vinho. Aí ouviu dois clientes elogiando a qualidade incomparável de uma mesa. Sempre curioso, na sua qualidade de artesão, inquiriu do que se tratava. Os homens reconheceram-no e explicaram que o enquanto estivera ausente o seu aprendiz tinha estado deveras ocupado com uma sua criação. Dédalo não esperou para ouvir mais nada, e dirigiu-se apressadamente para a oficina. Uma vez mais, estava um caos, e no centro estava uma mesa. A madeira tinha sido obviamente cortada, não talhada, e o as acabamentos eram perfeitos. Dédalo notou para si, não sem algum orgulho, como o aprendiz tinha dominado rapidamente a arte de manusear a serra, tão recentemente inventada. Disse ao rapaz para vir com ele e dirigiu-se à falésia, procurando um lugar adequado, sobranceiro ao mar onde construir novo templo. Perdix espreitava para baixo, observando o mar revolto e as pedras aguçadas. Caminhava junto à beira e Dédalo admirou o seu sangue frio e falta de vertigens, e dirigiu-se para ele.
- Muita gente viu a tua mesa, ontem.
- Sim. Não é bom? A serra funciona na perfeição.
- Assim é. Tão bem, que as pessoas ficaram com a impressão que foi invenção tua.
- Ficaram? Não foi com má intenção.
- Ainda assim, devias ter cuidado com o que dizes às pessoas. Não é lícito ficar com o crédito pelo trabalho dos outros.
Dédalo levantou o braço, com intenção de... lhe bater? O ameaçar? O empurrar?
Perdix sobressaltou-se e deu um passo atrás. Para além da falésia. Para o vazio. Gritou e caiu.
Foi Atena quem o salvou. Antes de bater nos escolhos em baixo, transformou-o numa ave, que seguiu voando baixo. E esta ave, que tem o seu nome, é avessa às alturas, voando sempre rasteiro e fazendo o ninho no chão.
Disto não se apercebeu Dédalo, que paralisara. Só uns segundos mais tarde se aproximou para procurar o sobrinho, mas nada viu, além do mar batendo furiosamente nas rochas aguçadas. Ali ficou longo tempo remoendo sobre a sua acção, e só já de noite regressou à cidade e contou o que se passara.
E assim foi que o grande Dédalo, artesão de renome, cidadão ilustre, príncipe de Atenas foi condenado por assassínio e reduzido à condição de escravo.
E assim foi também que foi escolhido para ser enviado ao rei Minos de Creta, como tributo.
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O próprio Minos veio receber o tributo enviado por Atenas. Trôpegos e temerosos, os escravos desembarcaram lentamente enquanto Minos os observava. Mantinham os olhos baixos, numa atitude respeitosa e receosa. Excepto um. Dédalo seria agora escravo, mas continuava tão orgulhoso como sempre fora. Era Dédalo, mais do que igual a qualquer homem vivo, e não baixaria os olhos para ninguém. Riu-se e Minos aproximou-se:
- Quem és tu, que achas sensato rir na cara de um rei?
- O meu nome é Dédalo.
- O Dédalo, o mestre artesão dos aqueus?
- Há apenas um Dédalo, e esse sou eu.
- E como aconteceu que o famoso Dédalo é agora um escravo? Terá o povo da coruja ficado tão cansado das suas obras que só assim se livram dele?
- Fui acusado de assassínio.
- E é verdade?
Minos explicou que as acções passadas não importavam em Creta, e que só a sua conduta na ilha determinaria o seu futuro. Libertou-o e convenceu-o a trabalhar para si. Para Minos, Dédalo construiu templos e edifícios, esculpiu estátuas e forjou armas, melhorou a armada e desenhou esgotos, e com o passar dos anos recuperou em Cnossos o prestígio que perdera em Atenas. Cnossos era uma cidade tão avançada como Atenas, mas mais aberta e liberal. Não tinha muralhas e as pessoas festejavam o período de paz e progresso que se vivia. Creta era a ilha das 90 cidades, e nenhuma mais bela e opulenta do que Cnossos. As galeras de Minos dominavam os mares e a sua frota mercante navegava até portos distantes, de onde traziam produtos exóticos e maravilhosos que se viam por toda a cidade. Dédalo tornara-se um cidadão eminente e amigo do rei. Este dera-lhe até uma escrava, Náucrate, de quem tivera um filho. Após o parto,, Náucrate retirara-se para o templo, tornando-se sacerdotiza e deixara a Dédalo a responsabilidade de o criar e educar. Ícaro foi o nome que Dédalo lhe deu, e acompanhava-o para todo o lado.
A coroa de Minos fora legitimada pelo touro branco de Cnossos, um animal estupendo e sagrado pelo qual a rainha Pasífae se apaixonara.
Foi durante um périplo de Minos pelas 90 cidades que Pasífae chamou Dédalo e lhe fez o seu pedido bizarro: para sair às escondidas do palácio onde Minos a mantinha confinada, pretendia que Dédalo fizesse para ela uma vaca de madeira, oca, onde pudesse esconder-se, mas tão perfeita que enganasse toda a gente. Dédalo recusou-se, sabendo que isso desagradaria a Minos, rei e amigo, mas Pasífae foi insistente e persuasiva, até que por fim o artífice acedeu, mais pelo desafio que lhe era colocado, do que pelo favor que pretendia fazer à rainha. Conseguiria ele, Dédalo, enganar de facto toda a gente? O orgulho prevaleceu e Dédalo construiu a vaca de madeira com que Pasífae se evadiu do palácio, enganando todos os guardas, e mais do que isso, enganou o próprio touro de Cnossos, usando-a para consumar a sua paixão por ele.
Minos não ficou satisfeito. Ao regressar soube da escapadela da rainha, e embora ela tivesse tido a honradez de não fazer denúncias, o rei soube bem a quem perguntar. Chamou Dédalo à sua presença e recebeu-o empunhando o machado de duas lâminas cerimonial.
- Porque me traíste, Dédalo? Reconheço o artista pelo seu trabalho. Pensava-te meu amigo.
Dédalo não respondeu, e Minos ia reflectindo apoiado no cabo do machado.
- Não posso matar-te. Fomos amigos e são preciosos os poucos amigos dos reis. Vou dar-te uma tarefa que te manterá ocupado. Constrói-me uma fortaleza sem portas. Nela guardarei os tesouros de Cnossos e o totem de Atenas, que os aqueus teimam em querer recuperar. A aberração que a rainha pariu aí será guardada também e os vigiará.
A rainha tinha dado à luz uma criatura, parte homem, parte touro, que Minos considerava ofensiva e perigosa. Era contudo, filha do touro sagrado, e não podia ser morta.
Dédalo foi desterrado para uma pequena ilha em frente do porto de Cnossos, pouco mais do que uma colina pedregosa e aí viveu durante nove anos, apenas com Ícaro por companhia, idealizando e construindo para Minos uma fortaleza onde não se pudesse entrar, mas que não tivesse portas. Concluiu que melhor que uma fortaleza onde se não pudesse entrar, era uma de onde não se pudesse sair, e desenhou e construiu um labirinto de tal forma intrincado e tortuoso que a saída era impossível de encontrar. Verdadeiramente ardiloso, o centro do labirinto era relativamente fácil de encontrar, já que se encontrava no topo da colina, pelo que bastava seguir o caminho ascendente. Mas se as colinas têm um só topo, a base é larga e a saída poderia estar em qualquer lado, e era impossível encontrá-la. O próprio rei Minos, acompanhado pelo arquitecto, constatou esse facto.
Quis conhecer o labirinto, e ele próprio depositou no centro o totem da coruja, mas ao tentar descobrir a saída, perdeu-se irremediavelmente, e de nada adiantou tentar retroceder pelo caminho que tinha seguido, ou seguir sempre tacteando a parede, ou tentar o caminho descendente. Mesmo Dédalo, que o acompanhou, teve grande dificuldade em encontrar a saída, apesar do seu conhecimento do labirinto e dos mapas de que se precaveu. Precaveu-se também de comida e bebida que falta lhes fizeram, pois não demoraram menos que dois dias e uma noite para conseguir sair.
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Dédalo estava de novo nas boas graças de Minos. De novo dedicado aos seus projectos, às suas estátuas, azulejos, estudando os pássaros e os ventos, as pedras e as correntes marítimas, as estrelas e o sol, e em tudo era acompanhado por Ícaro, tornado seu aprendiz.
Atenas continuava a pagar o seu tributo, e a cada quatro anos chegavam novos jovens que passaram a ser sacrificados ao Minotauro. Entre eles veio um dia um príncipe com a intenção de matar a fera e recuperar o totem da cidade, o que o tornaria o preferido para suceder ao rei Egeu, quando este falecesse. Desde que o viu desembarcar do navio, a filha mais velha de Minos, sacerdotiza do touro de Cnossos apaixonou-se por ele, e crendo-o condenado a ser devorado pelo Minotauro, ou, na melhor das hipóteses, sabendo-o condenado a errar pelo Labirinto até perecer de fome e sede, procurou a ajuda de Dédalo, apelando para a sua origem aqueia. Dédalo riu, considerando-se já cretense mais do que ateniense, mas Ariadne insistiu e, como sua mãe anteriormente, foi persuasiva e acicatou o orgulho de Dédalo: conseguiria ele prover um meio de entrar e sair do Labirinto sem deixar rasto? Sem se saber que tal feito tinha sido conseguido?
Dédalo riu, mas o seu orgulho tinha sido picado enquanto declinava, reflectia já num modo de levar a cabo tal tarefa. Conseguiria ele, Dédalo, enganá-los de novo?
E assim traiu Minos pela segunda vez. Mostrou a Ariadne como um novelo de lã desenrolado no percurso ascendente podia ser seguido para encontrar a saída, e de novo enrolado para não deixar qualquer vestígio.
Só muito depois Minos descobriu o que se tinha passado. Como Teseu tinha não só recuperado o totem de Atenas, como decapitado o Minotauro e fugido com a sua filha mais velha, apenas para a abandonar numa ilha quase deserta. De novo ficou grandemente desagradado.
- Libertei-te há dezoito anos, Dédalo. Não voltarei atrás com a minha palavra. Também não te matei quando tive motivo e não o farei agora. Mas não posso confiar mais em ti. Não voltarás a Cnossos.
E assim Dédalo foi exilado na pequena ilha onde edificara o labirinto, e com ele o seu filho Ícaro. Passava agora o tempo estudando as marés e as correntes, vendo passar as galeras do senhor dos mares, as mesmas galeras que ajudara a desenhar e aperfeiçoar, e que impediam agora a sua fuga; observando as gaivotas e o seu voo planado, analisando o vento e a maneira como o ar do mar sobe ao atingir as falésias, seguindo as correntes de ar pela poeira que arrastam. E agora sabe como sair da ilha. Minos controla o mar, mas não controla o céu.
Durante anos Dédalo estuda as correntes de ar, observa os pássaros e o modo como orientam as asas para manter um voo recto. Como viram e manobram, aproveitando o vento. Serve-se das penas que Ícaro se entretém a apanhar e que depois lança do alto da falésia, para visualizar o invisível rio de ar. Experimenta sucessivos modelos feitos de galhos e ossos de aves, cada vez maiores, cada vez mais pesados, que lança da falésia, ou do alto do monte.
Um dia tem um modelo suficientemente grande para erguer Ícaro, franzino e leve. Experimenta no monte, junto ao chão. O rapaz entusiasma-se, mas Dédalo tem correcções a fazer, melhorias a efectuar. Isto repete-se durante meses. Repetidamente chama o filho para o chão, apesar deste pretender voar cada vez mais alto, cada vez mais longe. É fácil, argumenta Ícaro. Mas Dédalo sabe que não é assim tão fácil. Continua a estudar os ventos e as colunas de ar. As correntes ascendentes e descendentes. Como o ar quente do centro da ilha sobe, e como desce no oceano quando a água o arrefece. Há muito a aprender, ainda. E faz sempre melhopres e maiores modelos, que Ícaro vai experimentando com entusiasmo.
- Já chega, Ícaro, não subas mais, volta para baixo.
- É fácil, pai, não há perigo. - a voz do filho chega fraca da distância e abafada pelo vento.
- Estás muito alto, volta para trás, não passes da falésia.
Mas Ícaro está demasiado alto ou longe para o ouvir, e Dédalo não pode senão observar, enquanto uma corrente descendente o apanha de repente, e com três voltas rápidas o leva numa espiral que o esborracha contra a falésia.
Dédalo observa, impotente, enquanto revive a perda de Perdix. O mar leva-lhe o filho, e Dédalo não pode senão culpar-se. De Ícaro, como de Perdix, não sobra vestígio.
Dédalo volta ao trabalho. Constrói novo aparelho, maior, à sua medida. Enquanto se prepara para se erguer nos ares e deixar a ilha, pensa como conhece melhor as correntes de ar. Pensa também como a viagem é longa e o engenho frágil. Mas isso não importa. Já nada importa.
A coroa de Minos fora legitimada pelo touro branco de Cnossos, um animal estupendo e sagrado pelo qual a rainha Pasífae se apaixonara.
Foi durante um périplo de Minos pelas 90 cidades que Pasífae chamou Dédalo e lhe fez o seu pedido bizarro: para sair às escondidas do palácio onde Minos a mantinha confinada, pretendia que Dédalo fizesse para ela uma vaca de madeira, oca, onde pudesse esconder-se, mas tão perfeita que enganasse toda a gente. Dédalo recusou-se, sabendo que isso desagradaria a Minos, rei e amigo, mas Pasífae foi insistente e persuasiva, até que por fim o artífice acedeu, mais pelo desafio que lhe era colocado, do que pelo favor que pretendia fazer à rainha. Conseguiria ele, Dédalo, enganar de facto toda a gente? O orgulho prevaleceu e Dédalo construiu a vaca de madeira com que Pasífae se evadiu do palácio, enganando todos os guardas, e mais do que isso, enganou o próprio touro de Cnossos, usando-a para consumar a sua paixão por ele.
Minos não ficou satisfeito. Ao regressar soube da escapadela da rainha, e embora ela tivesse tido a honradez de não fazer denúncias, o rei soube bem a quem perguntar. Chamou Dédalo à sua presença e recebeu-o empunhando o machado de duas lâminas cerimonial.
- Porque me traíste, Dédalo? Reconheço o artista pelo seu trabalho. Pensava-te meu amigo.
Dédalo não respondeu, e Minos ia reflectindo apoiado no cabo do machado.
- Não posso matar-te. Fomos amigos e são preciosos os poucos amigos dos reis. Vou dar-te uma tarefa que te manterá ocupado. Constrói-me uma fortaleza sem portas. Nela guardarei os tesouros de Cnossos e o totem de Atenas, que os aqueus teimam em querer recuperar. A aberração que a rainha pariu aí será guardada também e os vigiará.
A rainha tinha dado à luz uma criatura, parte homem, parte touro, que Minos considerava ofensiva e perigosa. Era contudo, filha do touro sagrado, e não podia ser morta.
Dédalo foi desterrado para uma pequena ilha em frente do porto de Cnossos, pouco mais do que uma colina pedregosa e aí viveu durante nove anos, apenas com Ícaro por companhia, idealizando e construindo para Minos uma fortaleza onde não se pudesse entrar, mas que não tivesse portas. Concluiu que melhor que uma fortaleza onde se não pudesse entrar, era uma de onde não se pudesse sair, e desenhou e construiu um labirinto de tal forma intrincado e tortuoso que a saída era impossível de encontrar. Verdadeiramente ardiloso, o centro do labirinto era relativamente fácil de encontrar, já que se encontrava no topo da colina, pelo que bastava seguir o caminho ascendente. Mas se as colinas têm um só topo, a base é larga e a saída poderia estar em qualquer lado, e era impossível encontrá-la. O próprio rei Minos, acompanhado pelo arquitecto, constatou esse facto.
Quis conhecer o labirinto, e ele próprio depositou no centro o totem da coruja, mas ao tentar descobrir a saída, perdeu-se irremediavelmente, e de nada adiantou tentar retroceder pelo caminho que tinha seguido, ou seguir sempre tacteando a parede, ou tentar o caminho descendente. Mesmo Dédalo, que o acompanhou, teve grande dificuldade em encontrar a saída, apesar do seu conhecimento do labirinto e dos mapas de que se precaveu. Precaveu-se também de comida e bebida que falta lhes fizeram, pois não demoraram menos que dois dias e uma noite para conseguir sair.
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Dédalo estava de novo nas boas graças de Minos. De novo dedicado aos seus projectos, às suas estátuas, azulejos, estudando os pássaros e os ventos, as pedras e as correntes marítimas, as estrelas e o sol, e em tudo era acompanhado por Ícaro, tornado seu aprendiz.
Atenas continuava a pagar o seu tributo, e a cada quatro anos chegavam novos jovens que passaram a ser sacrificados ao Minotauro. Entre eles veio um dia um príncipe com a intenção de matar a fera e recuperar o totem da cidade, o que o tornaria o preferido para suceder ao rei Egeu, quando este falecesse. Desde que o viu desembarcar do navio, a filha mais velha de Minos, sacerdotiza do touro de Cnossos apaixonou-se por ele, e crendo-o condenado a ser devorado pelo Minotauro, ou, na melhor das hipóteses, sabendo-o condenado a errar pelo Labirinto até perecer de fome e sede, procurou a ajuda de Dédalo, apelando para a sua origem aqueia. Dédalo riu, considerando-se já cretense mais do que ateniense, mas Ariadne insistiu e, como sua mãe anteriormente, foi persuasiva e acicatou o orgulho de Dédalo: conseguiria ele prover um meio de entrar e sair do Labirinto sem deixar rasto? Sem se saber que tal feito tinha sido conseguido?
Dédalo riu, mas o seu orgulho tinha sido picado enquanto declinava, reflectia já num modo de levar a cabo tal tarefa. Conseguiria ele, Dédalo, enganá-los de novo?
E assim traiu Minos pela segunda vez. Mostrou a Ariadne como um novelo de lã desenrolado no percurso ascendente podia ser seguido para encontrar a saída, e de novo enrolado para não deixar qualquer vestígio.
Só muito depois Minos descobriu o que se tinha passado. Como Teseu tinha não só recuperado o totem de Atenas, como decapitado o Minotauro e fugido com a sua filha mais velha, apenas para a abandonar numa ilha quase deserta. De novo ficou grandemente desagradado.
- Libertei-te há dezoito anos, Dédalo. Não voltarei atrás com a minha palavra. Também não te matei quando tive motivo e não o farei agora. Mas não posso confiar mais em ti. Não voltarás a Cnossos.
E assim Dédalo foi exilado na pequena ilha onde edificara o labirinto, e com ele o seu filho Ícaro. Passava agora o tempo estudando as marés e as correntes, vendo passar as galeras do senhor dos mares, as mesmas galeras que ajudara a desenhar e aperfeiçoar, e que impediam agora a sua fuga; observando as gaivotas e o seu voo planado, analisando o vento e a maneira como o ar do mar sobe ao atingir as falésias, seguindo as correntes de ar pela poeira que arrastam. E agora sabe como sair da ilha. Minos controla o mar, mas não controla o céu.
Durante anos Dédalo estuda as correntes de ar, observa os pássaros e o modo como orientam as asas para manter um voo recto. Como viram e manobram, aproveitando o vento. Serve-se das penas que Ícaro se entretém a apanhar e que depois lança do alto da falésia, para visualizar o invisível rio de ar. Experimenta sucessivos modelos feitos de galhos e ossos de aves, cada vez maiores, cada vez mais pesados, que lança da falésia, ou do alto do monte.
Um dia tem um modelo suficientemente grande para erguer Ícaro, franzino e leve. Experimenta no monte, junto ao chão. O rapaz entusiasma-se, mas Dédalo tem correcções a fazer, melhorias a efectuar. Isto repete-se durante meses. Repetidamente chama o filho para o chão, apesar deste pretender voar cada vez mais alto, cada vez mais longe. É fácil, argumenta Ícaro. Mas Dédalo sabe que não é assim tão fácil. Continua a estudar os ventos e as colunas de ar. As correntes ascendentes e descendentes. Como o ar quente do centro da ilha sobe, e como desce no oceano quando a água o arrefece. Há muito a aprender, ainda. E faz sempre melhopres e maiores modelos, que Ícaro vai experimentando com entusiasmo.
- Já chega, Ícaro, não subas mais, volta para baixo.
- É fácil, pai, não há perigo. - a voz do filho chega fraca da distância e abafada pelo vento.
- Estás muito alto, volta para trás, não passes da falésia.
Mas Ícaro está demasiado alto ou longe para o ouvir, e Dédalo não pode senão observar, enquanto uma corrente descendente o apanha de repente, e com três voltas rápidas o leva numa espiral que o esborracha contra a falésia.
Dédalo observa, impotente, enquanto revive a perda de Perdix. O mar leva-lhe o filho, e Dédalo não pode senão culpar-se. De Ícaro, como de Perdix, não sobra vestígio.
Dédalo volta ao trabalho. Constrói novo aparelho, maior, à sua medida. Enquanto se prepara para se erguer nos ares e deixar a ilha, pensa como conhece melhor as correntes de ar. Pensa também como a viagem é longa e o engenho frágil. Mas isso não importa. Já nada importa.
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