A lagarta antropófaga

   Como formigas diligentes enfileiram monocordicamente seguindo o caminho inconscientemente memorizado.
   Como um rebanho bem amestrado avançam coordenadamente, todos ao mesmo passo, pelo cais, amontoando-se até se pisarem uns aos outros.
    Como um bando de pombos entrando  pelo pombal, invadem a carruagem procurando um lugar sentado, o melhor lugar, à janela, virado para a frente.
    Quando o comboio finalmente parte, seguem em silêncio enfronhados nos smartphones, folheando os jornais desportivos ou ouvindo privadamente música, no silêncio dos seus auscultadores, fila após fila de ninguéns, destinados a coisa nenhuma, preenchendo os dias finitos de uma existência pré-determinada pelas suas incumbências e necessidades artificiais. 

    E contudo...

    A rapariga de óculos sentada junto à coxia, que abana imperceptivelmente a cabeça ao som de uma música que só ela ouve, é campeã de ginástica acrobática.
   Duas filas atrás, a senhora que olha absorta as suas mãos cruzadas sobre o colo, perdida em pensamentos só seus, é uma cozinheira de truz, famosa entre família e amigos, que convida frequentemente para patuscadas de fim-de-semana.
    Ao seu lado, espreitando pela janela, olhando sem ver os grafittis e gatafunhos que profanam as vetustas casas devolutas que ladeiam a via férrea, o jovem musculado é um talentoso violinista recentemente convidado para integrar uma filarmónica Lituana.
    Do outro lado, viajando de costas enquanto passa os olhos pel' A Bola, o homem por barbear e mãos calejadas é um pai extremoso, que ensinou o filho de 5 anos a lavar os dentes depois de cada refeição e lhe conta todas as noites histórias de encantar antes de o adormecer.
    De costas para este, o velhote que cabeceia como se fosse adormecer a qualquer momento, é na verdade um filósofo, um poeta que nunca escreveu um verso, mas que prende a atenção de quem quer que o oiça, onde quer que converse.

     E ninguém sabe dos outros, e nenhum se acha especial e do amontoado amorfo de gente anónima, ninguém reconhece niguém quando ao fim do dia os veem nos filmes do you tube.

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