Um Café e um Bagaço
Cruzaram-se na rua, por acaso, e foram tomar um café. Apenas um café, porque o tempo não dava para mais, sendo dia de trabalho. Apenas um café e dois dedos de conversa de circunstância: o que é que tens feito, há que tempos que não me encontro com o pessoal, devíamos combinar alguma coisa para um fim de semana destes. Um café ao balcão, de pé, que o tempo não dava para mais. Uma bica curta para o Paulo e um café e um copo de água para o Luís. Tudo à pressa, que era dia de trabalho e o tempo não dava para mais.
- Mas tu bebes a água depois do café? É pá, isso deixa um gosto esquisito na boca.
- Não, habituei-me assim, já não passo sem ele.
O Paulo estranhou, mas não insistiu. Contudo, uma senhora que estava sentada numa mesa quase encostada ao balcão acompanhada por um miúdo pequeno, talvez filho, ou neto, ouviu e comentou com o catraio:
- Reparaste, Zezinho? Aquele senhor tomou um café e a seguir bebeu um copo de água.
Ao Zezinho isso não fez espécie nenhuma, nunca tinha bebido café, e a água bebia-a sempre que lhe apetecia, de qualquer proveniência e sem ligar ao acompanhamento, mas um cavalheiro idoso que também tomava o seu café ao balcão concordou com a senhora.
- É verdade, eu também reparei. Que estranho. Os jovens hoje em dia têm cada mania!
A empregada de trás do balcão, profissional fazedora de conversa, acrescentou:
- Pois é, eu sirvo cada coisa que só visto. Mas eles querem assim, e eu só trabalho aqui. Mas beber a água em cima do café é realmente muito peculiar.
Gerou-se um sururu, com a clientela do pequeno snack bar a clamar em uníssono contra o copo de água depois da bica, e o mal que isso fazia, até que o pobre Luís se sentiu incomodado e acabou por sair sem terminar o copo de água, acompanhado de invectivas e comentários pouco simpáticos, enquanto o Paulo o tentava animar, sem realmente o apoiar. Cá fora, alguns clientes da esplanada apontaram-lhe o dedo e um ou outro tirou-lhe uma fotografia que pôs nas redes sociais.
Quando chegou ao emprego, já os colegas do Luís bichanavam em voz baixa nas suas costas, e as colegas das secretárias contíguas, habitualmente simpáticas e brincalhonas, rodaram ligeiramente as cadeiras, de forma a que não estabelecessem contacto ocular, a não ser pelo canto do olho, e fingiram-se anormalmente ocupadas, embora parte dessa ocupação consistisse em mandar sms e comentar as redes sociais.
Por volta das 3 da tarde, o chefe chamou-o ao gabinete, e sem mencionar bicas ou copos de água, explicou que a partir daquela altura o Luís teria que passar a trabalhar na secretária que ficava lá ao fundo, junto à arrecadação onde guardavam os dossiers dos processos antigos, e onde poucas pessoas costumavam ir. O Luís tentou reagir e argumentar, mas o chefe foi peremptório e quando o Luís terminou a mudança dos seus tarecos para a nova secretária, consideravelmente mais exígua e mal iluminada, ligou o seu computador e através da ligação wifi de má qualidade, verificou os seus e-mails, em número francamente mais elevado que o habitual. Entre vários e-mails desagradáveis que criticavam a sua escolha de bebidas ou a ordem pela qual as tomava, havia uma ou outra ameaça de morte e também um e-mail do escritório principal da companhia, dispensando os seus serviços e dando-lhe até ao fim do corrente dia para remover todos os seus pertences do cacifo que lhe estava atribuído e devolver o cartão de estacionamento.
O Luís estava já seriamente aborrecido, e sem esperar pelo final do dia ou dirigir palavra aos colegas, agarrou nos tarecos que tinha acabado de re-arrumar e saiu porta fora, rasgando o cartão de estacionamento e deitando os papéis para o chão. O porteiro olhou para ele com ar carrancudo, mas antes que pudesse fazer algum comentário pouco agradável, já o Luís estava cá fora, batendo com a porta giratória.
Foi imediatamente cercado por um enxame de jornalistas agitando microfones e blocos-notas e até uma ou outra cãmara de televisão. Queriam saber se tinha sido abusado durante a infância, se fazia parte de alguma seita, e há quanto tempo trabalhava para a Al-Quaeda. O Luís fugiu, com a sua pasta debaixo do braço e a moldura da fotografia da mulher e do filho pequeno na mão. Escondeu-se numa viela e telefonou à esposa para o ir buscar, porque não se sentia seguro a andar de transportes públicos, e nem sequer se atrevia a aproximar-se do carro.
Atendeu a esposa com uma voz chorosa, e entre soluços perguntou-lhe como tinha sido capaz de uma coisa daquelas, e disse-lhe que queria o divórcio e que nunca mais a procurasse nem tentasse ver o filho.
- O meu pai bem me avisou para não casar contigo, - disse-lhe com voz trémula. - Pensa a gente que conhece uma pessoa... - E desligou.
Entretanto a opinião pública dividira-se, e faziam-se debates nos canais públicos de televisão, em que entrevistavam chefs de cozinha famosos, industriais do café, advogados proeminentes e psicólogos de renome perante uma audiência esclarecida e interventiva, a quem era dada a oportunidade de dar a sua opinião. Formaram-se correntes de opinião, nenhuma favorável ao Luís, mas que se dividiam entre a extradição e a prisão perpétua. Fizeram-se abaixo-assinados e petições online, criaram-se movimentos cívicos e até uma religião, mas nenhum admitia beber a bica antes do copo de água.
Foi a pressão da opinião pública, que se insurgia contra a insegurança e imoralidade, que levou à demissão do Ministro da Administração Interna, e quando o primeiro ministro lhe manifestou publicamente o seu apoio, gerou-se tal onda de indignação que todo o governo veio abaixo. As pessoas saíram à rua clamando contra o governo, e foi uma turba furiosa que marchou sobre a Assembleia da República e depôs o regime que tinha permitido tal excesso.
E foi assim que o Luís contribuiu para um mundo melhor. Acalmados os ânimos foi convidado para Líder Supremo e o país tornou-se dos mais avançados e pacíficos do mundo, cheio de justiça social.
Quanto ao Luís passou a beber uma aguardente com o café.
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