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A mostrar mensagens de maio, 2016

A Casa dos Bicos

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    Em tempos que já lá vão existia em Lisboa uma casa singular.     Por essa altura chegavam frequentemente  à capital autocarros vindos da província. Traziam pess oas em busca de melhores condições de vida, familiares que vinham de visita, cidadãos que tinham negócios particulares ou afazeres com a administração pública que só na capital podiam ser resolvidos. Chegavam também excursões de curiosos que vinham conhecer os monumentos tradicionais, ou foliões que vinham divertir-se na Feira Popular. E muitos desses autocarros despejavam ali, no Campo das Cebolas, os seus carregos de viajantes, finalmente libertos das agruras que as esburacadas Estradas Nacionais infligiam aos seus costados. Eram longas e duras, as viagens desde as Beiras, Trás-os-Montes ou os Algarves.     Ora era precisamente no Campo das Cebolas que os mais versados nestas coisas das viagens de autocarro sabiam encontrar esta casa singular, e com frequência para lá se dirigiam ao chegar de viagem, ou antes de partir, c

Raio de Sol

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Um raio de sol. Era um raio de sol. E não era apenas um raio de sol, era o raio de sol mais bonito de todo o Sol. Era mais brilhante que qualquer outro, mais luminoso que os demais e carregava mais ultravioletas do que a maioria jamais sonhara ser possível. Era um raio de sol especial. Se os outros viajavam a 300000 km por segundo, aquele viajava a 300002. Mais rápido do que a luz. Era evidente para todos os raios que há no Sol (e há muitos raios no Sol), que aquele em particular estava fadado para grandes feitos. Até tinha nome. Um nome florido e alegre. Chamava-se Raio de Sol. Os pais eram hippies... Entretinha-se no Sol a preparar o seu dia. Flamejava e aquecia os motores para a sua viagem. Dava arranques e recuava. Aquecia ao rubro, depois ao rubro branco, e acalmava. Preparava-se. Os outros raios de sol observavam, respeitosos e temerosos. Raio de Sol impunha respeito e temor. Não porque fosse mau, perigoso ou austero, mas a sua aura era tão forte, a sua presença tão pujante, que

O Homem Invisível

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        Os Bettencourt eram uma família com pergaminhos. Longe vinha já a ascendência açoriana, igual a tantos outros Bettencourts, nacionais, insulares e ultramarinos, porque este ramo da família estava já diferenciado. Era praticamente uma nova árvore. Os casamentos cuidados tinham-se encarregado de os distinguir, e eram agora os De Bettencourt.     Ora habitavam os De Bettencourt numa moradia invejável, mas não faustosa, nem mansão, nem solar, nem palacete, na zona alta de Alcabideche, que não era bem Cascais, nem era bem Estoril. A moradia era invejável pelos padrões de Alcabideche e Alcoitão, mas aquém do diferenciado de Cascais, Estoril e Sintra, e como os De Bettencourt não eram outra coisa senão diferenciados, compensavam este facto com uma família numerosa que se tratava mutuamente na terceira pessoa, e tinha nomes diferenciados. O Sr De Bettencourt era Alberto, o que noutra pessoa qualquer seria vulgar, mas nos De Bettencourt tinha conotações monegascas, nada menos, que a Sra

Sherlock Holmes

- Quero reportar uma ocorrência. O guarda sentado atrás da secretária metálica observou rápida mas metodicamente o queixoso. Viu um homem que não teria ainda 40 anos, bem vestido e aprumado. Não aparentava ter sido sujeito a violência física, ou sequer psicológica. - Espere um momento que o nosso cabo vai já tomar nota. - Depois virou-se para trás e gritou para a sala dos fundos: - Ó Silva, venha cá tomar nota de uma ocorrência. O Silva apareceu, pouco agradado por ter sido interrompido na degustação da sua sandes de presunto. - Sente-se aí nessa cadeira. - ordenou com a arrogância de quem se acha em posição de finalmente poder dar ordens a alguém, e sem se dar ao trabalho de cumprimentar, perguntou: - Então de que se queixa? - Eu não me queixo de nada, não estou doente. - respondeu o homem sem o mínimo sinal de se sentir intimidado quer pela pose ameaçadora, quer pela falta de educação. - Quero apenas reportar uma ocorrência. O polícia suspirou para dentro, sentou-se e enquanto começa

Morte súbita

   Quem não foi já abordado num restaurante ou snack bar por alguém a pedir dinheiro? Geralmente são indivíduos com ar miserável, escanzelados e de tez morena, que às vezes não é possível distinguir se tem origem étnica ou apenas falta de asseio, possivelmente tatuados, eventualmente com um balde de tinta Robbialac cheio de caracóis, que tentam vender a preços atractivos. Naquele dia não foi nada assim. O fulano que se aproximou da mesa não tinha nenhuma destas características, nem rastas no cabelo nem marcas de agulhas. Vestia-se adequadamente para a estação do ano e não cheirava mal. Nem sequer fazia prever que viesse pedir dinheiro. E não pediu. Aproximou-se do cavalheiro que bebia a sua imperial enquanto degustava um pires de tremoços exageradamente salgados e cumprimentou delicadamente.    - Boa tarde. Desculpe incomodá-lo, mas o senhor tem um emprego para mim?    - Um emprego? Porque deveria eu ter um emprego para si?    - Não achei que devesse, considerei apenas que poderia ser