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Meia noite em ponto

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Era meia-noite em ponto, faltava um quarto para a uma. Um ancião ainda moço Todo nú de mão no bolso Sentado em pé num banco de pau feito de pedra  Lia um jornal sem letras À luz de um candeeiro apagado Que um caracol descia para cima. E nas letras que o jornal não trazia, dizia: "o mundo é uma esfera quadrada que gira parada em torno do sol, e enquanto as pachorrentas vacas voam de galho em galho andam os lindos passarinhos a pastar pelos campos de orvalho..." E lendo isto, a cega analfabeta gritou em surdina: - Prefiro matar-me do que perder a vida.

Aleluia

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  Já viram bem os telejornais? Já ouviram os noticiários? Consultaram a Internet?  Parece que o mundo está a acabar. Fome no Ruanda, contaminação nuclear em Fukushima, desaparecimento das calotes polares, o preço do barril de crude a subir, incêndios, terramotos, avalanchas, erupções vulcânicas. Racismo, HIV, atentados terroristas, bolhas imobiliárias, tsunamis, homofobia. O mundo está a acabar!    Mas há esperança, senhoras e senhores. Não atirem ainda a toalha, temos ainda vários assaltos pela frente. Mais que esperança, há vida e há certeza. O mundo NÂO vai acabar, irmãos e irmãs.  E como é que eu sei? Sei-o porque há alguém que vela por nós. Há alguém que está no nosso canto, que está em todos os cantos, que está em  toda a parte. Alguém para quem as inundações, os descarrilamentos e a xenofobia não são mais que incómodos passageiros. Alguém através de quem ultrapassaremos a seca mais severa, a doença mais virulenta, o asteróide mais destruidor.   Sim, irmãos e irmãs, o nosso futur

Um Café e um Bagaço

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       Cruzaram-se na rua, por acaso, e foram tomar um café. Apenas um café, porque o tempo não dava para mais, sendo dia de trabalho. Apenas um café e dois dedos de conversa de circunstância: o que é que tens feito, há que tempos que não me encontro com o pessoal, devíamos combinar alguma coisa para um fim de semana destes. Um café ao balcão, de pé, que o tempo não dava para mais. Uma bica curta para o Paulo e um café e um copo de água para o Luís. Tudo à pressa, que era dia de trabalho e o tempo não dava para mais.    - Mas tu bebes a água depois do café? É pá, isso deixa um gosto esquisito na boca.    - Não, habituei-me assim, já não passo sem ele.   O Paulo estranhou, mas não insistiu. Contudo, uma senhora que estava sentada numa mesa quase encostada ao balcão acompanhada por um miúdo pequeno, talvez filho, ou neto, ouviu e comentou com o catraio:    - Reparaste, Zezinho? Aquele senhor tomou um café e a seguir bebeu um copo de água.    Ao Zezinho isso não fez espécie nenhuma, nunca

Inequívoca Justiça

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Da tribuna o juiz expunha as suas dúvidas: - Recapitulando: o queixoso afirma que foi atacado com um objecto contundente por um indivíduo encorpado, de tez macilenta, suíças ruivas, embora fosse calvo, envergando um fato de caqui adornado com lantejoulas. É assim? - É assim exactamente, Sr. Dr. Juiz. - confirmou o queixoso. - E arescenta a transcrição de um depoimento de uma testemunha ocular que não pode estar presente devido à sua pouca idade. Correcto? - Sim, Sr. Dr. Juiz. - confirmou a acusação. E acrescentou: - A testemunha presenciou tudo a partir da janela da sala de aula da sua escola. - Bom, de acordo com este depoimento, o atacante é, cito, "um bacano cool tipo de cap e vans". Não parece corresponder à descrição. - O meu cliente assegura que sim. - Diz a testemunha que em vez de um objecto contundente o homem teria "uma ceninha tipo assim bué de marada". A acusação aproveitou a oportunidade: - Exactamente, Sr. Dr. Juiz. Um objecto perigo

A lagarta antropófaga

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   Como formigas diligentes enfileiram monocordicamente seguindo o caminho inconscientemente memorizado.    Como um rebanho bem amestrado avançam coordenadamente, todos ao mesmo passo, pelo cais, amontoando-se até se pisarem uns aos outros.     Como um bando de pombos entrando  pelo pombal, invadem a carruagem procurando um lugar sentado, o melhor lugar, à janela, virado para a frente.     Quando o comboio finalmente parte, seguem em silêncio enfronhados nos smartphones, folheando os jornais desportivos ou ouvindo privadamente música, no silêncio dos seus auscultadores, fila após fila de ninguéns, destinados a coisa nenhuma, preenchendo os dias finitos de uma existência pré-determinada pelas suas incumbências e necessidades artificiais.      E contudo...     A rapariga de óculos sentada junto à coxia, que abana imperceptivelmente a cabeça ao som de uma música que só ela ouve, é campeã de ginástica acrobática.    Duas filas atrás, a senhora que olha absorta as suas mãos cruzadas sobre o

Se a tanto o ajudar o engenho e arte

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   O povo da coruja era orgulhoso. Orgulhoso da sua cultura, da sua civilização. Foi um duro golpe nesse orgulho serem conquistados pelo senhor dos mares. Um golpe dado pelo machado de duas lâminas de Minos, rei de Creta, cujas galeras puseram fim à pirataria de Atenas. Talvez a deusa padroeira tivesse tomado o seu nome da cidade; talvez a cidade tivesse honrado a deusa tomando o seu nome; em qualquer dos casos, o totem da cidade, em que estava representada a ave da sabedoria, como alusão à deusa, fazia parte do espólio que Minos levou consigo para Creta, assegurando assim a vassalagem de Atenas. E isto era um rude golpe no orgulho dos aqueus. Tão rude como a exigência de Minos de 14 jovens de sangue real. Era profissão de risco ser príncipe, nesta altura.    Havia contudo um príncipe de Atenas que não se preocupava com este risco. Era um príncipe artesão, artífice e artista, conceituado e estimado por todos, conhecido pelo seu engenho e artifício, e o seu nome era Dédalo.    A certa a

The hitchhiker's guide to the galaxy

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Tinha uma mala vazia para pôr as recordações que teria.  Um livro de moradas em branco onde anotaria as dos amigos que faria.  Um mapa sem fronteiras, estradas ou nomes dos lugares onde iria.  Aproximou-se da bilheteira  e pediu um bilhete para o comboio. Ia viajar.  Não mencionou o destino. Não tinha.  Não especificou para quando era o bilhete. Não importava. Não planeava ter fome, frio ou cansaço. Consigo levava apenas música. Tocava dentro da sua cabeça.