Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2017

Um Café dos Diabos

Imagem
   Se há coisa boa que o século XXI trouxe, são as máquinas domésticas de fazer café expresso. Acabou-se a necessidade de sair à noite, por vezes com chuva, frio ou mau tempo, para ir tomar o cafezinho depois do jantar. Agora basta pôr a cápsula na máquina, premir o botão, e aqui temos a nossa bica pronta a consumir logo a seguir à refeição, como se estivéssemos no restaurante. Um luxo! E não apenas após as refeições, está disponível sempre que queiramos.    Ora foi precisamente numa dessas ocasiões, em que eu quis, que me apeteceu tomar um cafezinho de manhã, em vez de sair para ir comprar o jornal (outro hábito obsoleto do século XX). Tirei o meu cafezinho, deitei-lhe meio pacote de açúcar (estou a treinar para ser saudável) e levei a chávena para a mesa do pequeno almoço, onde me sentei a desenhar distraidamente figuras geométricas na espuma do café acabadinho de fazer. Estes cafés modernos têm uma espuma fantástica, só comparável à da imperial acabadinha de tirar, e até dão para de

Alma Lusitana

Imagem
Quando for grande quero ser lusodescendente. Primeiro porque é uma palavra fixe: lusodescendente. Parece o nome de um funicular nas termas do Luso, daqueles que só vão para baixo. Imagino que haja também lusoascendente, que é o que vai para cima, mas esse não parece ser tão famoso. Depois porque os lusodescendentes são sempre pessoas sérias, capazes de grandes coisas e notáveis nas mais diversas áreas. Há lusodescendentes campeões de ski, senadores americanos, guitarristas em grupos rock de renome mundial, presidentes de câmara em cidades francesas importantes, pintores, futebolistas, vencedores do festival da canção, cientistas... Tudo pilares da sociedade. Das sociedades, porque pertencem a várias sociedades, nunca a portuguesa. E também não importa nada que não saibam uma palavra de português, que nunca tenham cá vindo ou que nem sequer saibam onde fica, o que é uma grande probabilidade, no caso dos lusodescendentes americanos. Importa é ser lusodescendente para Portugal ter uma equ

Gourmet

Imagem
   - Ora então o que vai ser? - perguntou, enquanto esfregava a mesa com fingido vigor.    - O que tem pronto a sair? - perguntou por sua vez o homem mais velho.    - A esta hora já há pouca coisa. Dos pratos do dia já só temos meia dose de polvo à Lagareiro e uma de rojões à minhota. Só um momento que trago já o menu. Vão desejar entradas?    Os três assentiram, mas prescindiram da pasta de sardinha. Apenas o pão, a manteiga e umas azeitonas. Ah, e um queijo para barrar.    O empregado trouxe as entradas e os menus, e foi à sua vida, distribuir jarros de vinho da casa e levantar uma mesa. Voltou pouco depois.    - Então já escolheram?    Disse o mais velho:    - Eu vou querer os rojões.    O menos velho perguntou:    - Tem menu vegetariano?    - Sim, está aí na terceira página, entre o menu canibal e as sobremesas.    - Desculpe, disse menu canibal?    - Sim, na terceira página, antes do menu vegetariano.    - O que é o menu canibal?    - Bem, como o nome indica, são pratos confeciona

A apologia da metodologia

Faço a apologia da metodologia. Não me falem em poesia que me deixa irritado, amofinado, cansado. A minha veia poética está exangue Os meus segundos sentidos, embotados A minha métrica, delirante E os recursos, linguísticos. Não quero saber de metáforas De síncopes, sinestesias ou anástrofes Detesto  prosopopeias e anáforas, Pleonasmos, eufemismos e metásteses. Enfadam-me a liberdade poética E poemas psicanalisados. Renego a teoria Aristotélica. Quero os textos apenas terminados.

Memoirs

Imagem
   Antes que me esqueça, decidi escrever as minhas memórias.    Não sei ao certo se é adequado uma pessoa vulgar escrever as suas memórias, ou se é necessário ser um grande homem, com grandes feitos, prémios, comendas ou nome na toponímia local, mas se porventura atingir algum desses estatutos, estarei demasiado ocupado a fazer conferências ou a dar entrevistas para ter tempo a escrever memórias, por isso mais vale fazê-lo já, enquanto tenho disponibilidade.    O passo seguinte é descobrir a estrutura das minhas memórias. Em que diferem de uma autobiografia? Poderei contratar um escritor conceituado para as redigir, ou tenho que ser eu a fazer isso? É que assim parece um esforço sobre-humano, talvez hercúleo: lembrar-me das coisas, E escrevê-las. Se bem me conheço, enquanto estiver a escrever uma memória, vou esquecer-me de como acaba. Não tenho ideia de o Super-Homem ou o Hércules terem alguma vez escrito as suas memórias.    Depois há a questão do título. Não posso chamar-lhe apenas

Balelas

O mar é um poeta. Como o outro, é um fingidor, um aldrabão. É um vira-casacas, um meias-tintas, um duas caras. Escreve na areia mensagens ininteligíveis que apaga logo a seguir, como se estivesse arrependido. Massacra percebes, lapas e mexilhão sem piedade, como figuras de estilo de um qualquer Luís numa folha de teste. Tão depressa marulha como gorgulha e ruge, como se não soubesse o que quer. Calmo à superfície, por baixo ele é remoinhos, fundões e correntes. Enquanto entretém alguns, arrasta outros, engole-os e não mais os devolve. Tão logo é serenidade como fúria e destruição. Dizem que se deve respeitá-lo, mas é temor que incute, e quem isso ignora, arrisca penosa lembrança. Está pejado de pescadores incautos, nadadores destemidos, galeões recheados de tesouros e atlantes. Fonte de vida ou Adamastor? Apenas poeta.